o leitor (im)penitente 267
Terra desolada*
(a propósito de Eugénio Lisboa)
mcr 12-4-24
"abril é o mais cruel dos meses, germina
lilases da terra morta, mistura
memória e desejo, aviva
agónicas raízes com a chuva da primavera
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(T S Elliot, "A Terra desolada, trad. de Ivan Junqueira
Nova Fronteira ,Rio de Janeiro, 1981)
Morreu anteontem Eugénio Lisboa, um dos mais importantes intelectuais de Moçambique (pré-independência), afastado da terra onde nasceu, onde resistiu, onde deu a conhecer autores também nascidos nessa margem do Índico e igualmente maltratados por um poder autocrático, absurdo e, sobretudo, estúpido, cuja governação ainda hoje assombra o território, sobretudo o norte.
Tirando o consulado de Joaquim Chissano, meu colega de liceu, no 2º ciclo, as desventuras do povo de Moçambique foram e são (ainda) muitas e trágicas.
ainda por estes dias um barco de pesca carregado de refugiados do cólera naufragou à vista da Ilha de Moçambique deixando na baía mais de cem vítimas.
E quando não é doença, é a fome e sobretudo a guerra larvar que contamina toda a extensa zona de Cabo Delgado e ameaça as terras de Nampula.
Um Governo impotente para deter uma pequena seita islamista e fanática, obrigado a pedir ajuda a tropas de países vizinhos, a braços com mais de meio milhão de deslocados, eis o dramático panorama de uma terra que poderia ser feliz, rica e livre.
Eugénio Lisboa, nascido na então Lourenço Marques, num bairro branco mas periférico, habitado por colonos pobres, engenheiro de profissão deixa uma vasta produção literária de notável qualidade onde, para além dos estudos sobre Régio, abundam crónicas, poemas, ficções e uma notável autobiografia ("Acta est fábula, memórias", Opera Omnia, Lisboa) narra no vol III, a partir da p 423 os surpreendentes mas dramáticos anos de 1974 a 76 que a partir de uma esperança de descolonização necessária e sensata descambaram numa temporada de insânia onde, lado a lado, comungaram os brancos mais burros e incapazes com os africanos mais exaltados e radicais. Juntos conseguiram tornar Moçambique num país que ainda não conseguiu escapar à situação de Estado quase falhado.
É verdade que uma boa parte dos portugueses que abandonaram o território (e muitos nem esperaram pela independência para o fazer) tinham razões (más) de sobra para o fazer. Não lhes passava pela cabecinha ignorante e racista a ideia de serem governados pela maioria negra.
Todavia, houve um número também importante de portugueses (e aqui cabem mulatos, negros, indianos e brancos)que nunca pensaram noutra pátria que não fosse aquela onde tinham nascido. que eram essenciais a todos os ramos de actividade; que eram, como se verificou, insubstituíveis pelos "conselheiros" socialistas, mormente alemães da RDA que afluíram sem conhecer aquela realidade e, provavelmente, sem especial interesse em a perceber.
Também é verdade que muitos dos cooperantes vindos de Portugal só se distinguiam dos anteriores citados por falarem português. No resto supunham-se apóstolos de radicalismos esquerdistas que provaram dolorosamente a sua absoluta ineficácia e tornaram ainda mais dura a vida das pessoas. Outros mais sensatos e capazes não conseguiram impor-se aos primeiros e, regra geral, regressaram desiludidos à ex-metrópole colonial (conheci pessoalmente uma boa dúzia e sei de muitos mais). Pela parte que me toca, colaborei à distancia, e sempre pro bono, em alguns projectos e guardo com particular carinho um livro editado em Maputo, Kutsemba carão edições, 2010, prescindo eu, gostosamente, dos direitos de tradução de "Cem garrafas na parede" obra da minha amiga cubana Ena Lucia Portela, autora várias vezes premiada e muito traduzida.
De certa maneira, o exílio forçado DE Eugénio Lisboa (como o de Rui Knopfly, um grande poeta de Moçambique que teve o azar de nascer branco (e a lista de intelectuais cientistas e técnicos de rara ompetência que subitamente se viram despojados da terra em que se criaram, cresceram e ajudaram a prosperar é enorme) permitiu a Portugal ter diplomatas valiosos que para aqui vieram forçados.
E não vale a pena mencionar os vexames, perseguições e violências várias que sofreram por terem permanecido naquilo a que chamaram pátria. E nesta lista cabem nomes que, hoje, passada a insana borrasca pseudo revolucionária da época Machel, são reclamados como pais fundadores de um país que cinquenta anos depois ainda não viu nem a paz nem democracia.
A ditadura de Machel não poupou militanntes históricos da frelimo com provas dadas na resistencia interoiopr e na guerrilha. assim, sebastião mabote, general, foi destituido dos seus cargos, enviado para cuba, penou 14 meses numa prisão até conseguir ser libertado mesmo se, já não pode voltar, às fileiras militares.
outro resistente conhecido , Matias Zefanias M'Boa depois de ter passado sete anos preso durante o período colonial, foi julgado (Julgamento dos 300) em 1978 e condenado a mais cinco anos desta feita no Moçambique "libertado". Saiu da prisão directamente para o Cmité Central da FRELIMO!!!
Malangata, o genial pintor, também não foi poupado mesmo se, no mesmo julgamento mencionado, nada se provasse contra ele. Foi deportado para o Norte de Moçambique para um campo de trabalho onde passou uma temporada dura sobretudo para um homem que já passara dos cinquenta anos. Após a época de Machel foi cumulado de honrarias pelas mesmas (ou quae) driaturas que o tinham perseguido.
como, acima narrei, esse famoso julgamento dos 300 nem sequer foi conduzido por qualquer instância judicial mas tão só por membros da FRELIMO que em pensaram que estavam a usurpar funções e a transformar o país numa ditadura autocrática.
De certa maneira, a elite branca e democrática que foi obrigada a sair de Moçambique logo nos primórdios revolucionários, teve imensa sorte. Caso tivessem conseguido ficar, é muito provável que não bastassem penas de prisão para os silenciar e punir...
Ainda não li (nem comprei) o "epílogo" das memórias para verificar se Eugénio Lisboa se debruça sobre os ásperos tempos já posteriores à sua saída. Sei tofavia, que, em Cascais onde veio a morrer tinha como eventual vizinha Noémia de Sousa, "a mãe dos poetas moçambicanos" que já por várias vezes aqui referi- Mais uma intelectual que, como Bertina Lopes a "mãe dos pintores moçambicanos" (se me é permitido usar a citação sobre Noémia), morreu em Roma. É bem verdadeiro o título de um belo livro de poemas do cabo-verdiano Daniel Filipe "Pátria, lugar de exílio"