o leitor (im)penitente 272
A Fernanda Santos regressou
mcr, 20-9-24
You can tell the mailman not to call
I ain't comin' home until the fall
And again I might not get back home at all
Lulu's back in town, yeah
Oh tell all my pets
All my Harlem coquettes
Mister Waller regrets
[Incomprehensible], no
Tell the mailman not to call
Ain't comin' home until the fall
And then again I might not get home at all
Lulu's back in town
A Fernanda Santos regressou a sua oficina de encadernação onde ocorrem autênticos milagres no que toca a vestir um livro velho e quase destruído numa coisa pimpona, bonita, legível com ar cosmopolita. limpo e jovial.
É esse o oficio dos encadernadores que amam os livros e os salvam das misérias da idade, do descuido dos seus possuidores e de mais uma série de desastres que afectam livros e bibliotecas.
Conheci a Fernanda e a sua pequeníssima equipa quando me caiu na mão uma publicação que parecia fugida de Gaza ou dos piores territórios da Ucrânia invadida por uma horda selvagem às ordens de um autocrata delirante e saudoso dos piores dias do estalinismo.
Era uma edição comemorativa sobre a imprensa de Moçambique cujo centenário caiu em 1954.
Em papel da época, e sobretudo o papel de jornal, deixava muito a desejar. Aquilo vinha sujo, coberto de pó que parecia colado às folhas e os bordos das páginas estavam crivados de numerosos rasgões.
O alfarrabista que me vendeu aquela peça jurava que era raríssima mas fazia um preço baixíssimo porque ele mesmo acreditava que aquele monte lixo nunca teria comprador .
Ora, eu vivi em Moçambique entre o terceiro e o quinto ano do liceu e fiquei para sempre um autêntico macua (de facto deveria acrescentar changane pois foi mais o tempo de estadia em Lourenço Marques do que em Nampula, terra a que ainda regressei já universitário por duas longuíssimas férias de Verão). Nunca mais lá voltei mas recordo tudo (colonialismo incluído) e. ao longo dos anos fui constituindo uma biblioteca africana que ocupa uma inteira parede de uma divisão da casa.
Esta publicação cujo valor é mais documental e sentimental do que científico, permitia-me, de qualquer modo, retraçar a origem de algumas publicações periódicas que nem sequer constam das bibliotecas portuguesas e, menos ainda, moçambicanas
Quando entreguei aquele "quase monte de lixo" à Fernanda estava bem longe de imaginar que após um paciente trabalho de limpeza, e de um forte esforço para aparar as páginas, ela me entregasse algo que parecia não vou dizer novo mas apenas um muito bem conservado jornal comemorativo de 60 páginas. Encadernado em meia francesa (e também nisto há mester digno de louvor; basta pensar que o tamanho das folhas anda pelos 50x32 cm que implica que o livro necessite sempre de estar bem amparado por outros do mesmo porte mas bem mais espessos para não entortar). Já tive ofertas que atingiram cem vezes o peço (baixo) que paguei na compra.
Andam cá por casa mais de 500 livros encadernados pela Fernanda & comandita. Todas essas encadernações são o que chamo "encadernações defensivas" ou seja de tentativas até agora bem sucedidas de salvar livros e revistas cujo estado não era exactamente o melhor.
Alguém, neste ponto, dirá que devo ter gasto uma fortuna tanto mais que eu mesmo adquiri papéis especiais quase sempre estrangeiros. Como as lombadas e os cantos são em pele poderia pensar-se que cada encadernação me tivesse ficado por várias dezenas de euros. Nada disso. Paguei muito pouco porquanto esta oficina de encadernação está sob a alçada da Segurança Social e tem por objectivo criar emprego assistido para pessoas com diferentes tipos de deficiências físicas.
Em boa verdade, os comandados pela Fernanda Santos podem orgulhar-se por trabalhar, ter a sensação que são úteis e, finalmente prestarem um serviço à farta clientela (alguma institucional) que acorre ao seu local de trabalho.
Tudo isto, entretanto foi posto em causa pela pandemia e, depois pela ausência da Fernanda que necessitava de um rim. Três anos mais tarde, ei-la que regressa sempre bonita, sempre prestável, sempre competente
Tinha lá vários livros para encadernar e arranjar e esperei pacientemente e com esperança por este dia.
Não sei porquê, ou se calhar sei bem de mais, do fundo do coração, que só me apetece trautear uma velha canção americana, um standard de jazz que todos os grandes a começar por Fats Waller interpretaram Não sou, quem me dera, o herói da cantiga, mas o tema leve, brincalhão e desenfadado de "Lulu's back in town" não me sai da cabeça e distrai-me dos péssimos dias porque tantos portugueses estão a passar.
E já tenho um monte de livros para entregar ao cuidados da Fernanda porque ela, para além da eficiência tem um gosto notável combina como ninguém os papéis que forneço com as peles que arranja para já não falar nos "ferros" que aplica nas lombadas.
Alfarrabistas amigos a quem mostrei alguns dos livros tratados pela Fernanda quiseram logo saber onde é que pratica as suas boas artes. Porém como são de Lisboa, desistiram porque não vale a pena fazer a viajem e, sobretudo, esperar pela conclusão do trabalho que, esse sim, é demorado dada a escassez de pessoal na encadernação.