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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

o leitor (im)penitente 274

mcr, 02.12.24

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Os livros proibidos, queimados, não editados e as jornalistas analfabetas (ou pior...)

mcr, 1-12-24

 

Estou farto de me referir ao jornal que todos os dias (desde o primeiro número....)  compro e leio. Durante anos juntava-lhe quase diariamente "Le Monde", "El  País" e "La  Republica".

Agora esses jornais ou deixaram de chegar a Portugal ou chegam às pinguinhas e nunca à tabacaria-papelaria onde todas as  manhãs, antes da primeira bica me forneço da imprensa que ainda resta disponível. 

E quando estou (cada vez menos...) no estrangeiro faço (ou fazia) o mesmo, encher-me de notícias frescas como quem parte para um pequeno almoço reforçado.

O mesmo ocorre com revistas e também aí as coisas pioraram e muito, mesmo em comparação com os anos de chumbo quando assinar uma revista era uma aventura cara e às vezes perigosa como verifiquei muitos anos depois ao ler os processos que a miserável pide me foi movendo. Curiosamente citavam mais vezes "L'Éxpress" ou "Le nouvel obaservateur" que a volumosa  e progressista  "Europe"  provavelmente porque esta aparecia como uma revista literária! Também terão escapado aos sevandijas policiais os "Cuaderni Piacentini" (provavelmente por serem em italiano) ou mais surpreendentemente ainda uma publicação semi-artesanal  "Analyses et documents" que seria obra de um esforçado e bem preparado grupo de trotskistas franceses. 

Tudo isto para agora me espantar por ler uma prosa insípida e aberrante, mal documentada e com um mais que provável carga de má fé de uma senhora que assina o editorial do "Público" de hoje, domingo, 1º de Dezembro. 

Em meia página, a referida criatura começa por  referir umas pessoas que (cito)"não acreditam só que não deve haver liberdade de ler, Acreditam que não deve haver liberdade. Ponto."

Até aqui nada há a repontar. Os que advogam a iletreracia à força são sempre inimigos da liberdade. E da cultura, E da poesia. E de quase tudo.

O problema está no resto do texto. Melhor dizendo de parte do texto. De facto, a autora refere que nos EUA  houve (algumas) localidades onde se propôs a destruição de livros ou subversivos ou corruptores da moral. Eram, segundo ela iniciativas de (alguns) cidadãos e/ou (algumas) autoridades públicas. (os parentesis sãõ meus)

De seguida, refere as famosas queimas de livros na Alemanha nazi, queimas essas levadas a cabo por uma grande parte da juventude estudantil. 

Ambos os casos, mesmo se com diferentes proporções, desígnios e apoios, são verdadeiros mesmo se o caso alemão tornado acção do Estado fosse bem mais radical e absolutamente perigoso para os escritores cujos livros arderam. Recordo que entre os grandes nomes (a Começar por Thomas Mann) estava o  autor de "Emilio e os Detectives", Erich Kastner um liberal humanista que teve a enorme coragem de permanecer na Alemanha para "testemunhar" o que se passava e "não abandonar o povo". São dele algumas das mais lúcidas analises do peíiodo mais negro da historia alemã.  

Deixemos, porém o escritor  e passemos ao que interessa: a proibição de ler, a proibição de escrever. Quando se entra neste tema, para além de poder  (e dever...) testemunhar o caso português (centenas de livros proibidos e apreendidos, escritores vigiados  ou julgados ((por todos Aquilino)) convém lembrar o caso da União Soviética onde depois de uma inicial explosão literária de rara qualidade se passou ao silenciamento total de centenas de escritores incluindo três futuros prémios Nobel (Pasternak, Brodsky, e Soljenitsin) . É longa, longuíssima, a lista dos que foram presos, enviados para o gulag a partir do início dos anos trinta e praticamente até à era de Gorbachev. É verdade que, durante um curto período, e sob a égide de Krutschev, pareceu existir um ligeiro apagamento da censura mas foi sol de pouca dura malgrado o aparecimento de Evtuchenko ou  Voznessensky. Outros poetas de grande qualidade foram entretanto tratados como "vadios", internados em asilos psiquiátricos e sempre proibidos de publicar. Isto, obviamente, para não falar no período anterior que viu autores da importância de Mandelstam serem presos e rapidamente executados. Não vale a pena referir  que os três Nobel acima referidos foram continuamente perseguidos na URSS sendo o caso de Soljenitsin o mais  trágico pelos longos anos de gulag  mesmo depois de durante o referido e curto período de Kruutschev ter  tido a sorte de publicar "um dia na vida e Ivan Denisovitch" um "classico" que chegou a ser estudado em algumas escolas. Depois foi o que se viu: a prisão e o silenciamento.

O mesmo ocorreu nos chamados países satélites e sobretudo na China onde o poder nunca apreciou os intelectuais mormente os escritores. A Revolução Cultural foi o momento mais trágico mas as ameaças e a censura nunca pararam. Até hoje. 

Portanto: referir as perseguições levadas a cabo por sectores, de resto minoritários, americanos associar-lhes algo desalmadamente diferente no caso alemão já é´ou ignorância grosseira ou má fé. Se ao mesmo tempo não se referir o que e passou nos setenta e tal anos soviéticos ou na China já mostra claramente enviésamento ideológico.

A segunda parte do editorial em questão refere as ameaças de grupos radicais claramente (para já) minoritários de Direita que interrompem sessões de  apresentação de livros da área lgbtqia+ com insultos, palavrões ou mesmo ameaças.

Pessoalmente nada tenho contra (ou a favor) tal área mas repugna-me absolutamente a acção dos grupelhos ultra que não só carecem de qualquer legitimidade para as suas acções mas, ainda por cima, é duvidoso que obtenham resultados desse tipo de campanhas pois ao vitimizar os opositores dão-lhes uma aura de perseguidos que eles usam sempre. Mas não é da estupidez dos radicais que pretendo falar (já aqui o dfiz demasiadas vezes) mas sim de uma outra questão.

Mesmo dentro da União Europeia há países, para não falar de fortes minorias ou maiorias partidárias,  que não aceitam sequer a manifestação pública dos defensores  lgtb.-... Aliás existem mesmo fortes proibições  que afectam essas pequenas minorias. 

Porém, e  é aqui que bate o ponto, a área sexual minoritária em questão é brutalmente perseguida na Rússia, na China, nos países muçulmanos e, sobretudo em África. 

Acontece, todavia, que muitos dos mais radicais defensores da mesmíssima área lgtb.... usam igualmente um discurso anti-racista, anti imperialista, anti colonialista a par da defesa da sacrificada Palestina onde a homossexualidade nunca, de resto, foi tolerada. Ou, por outras palavras, os ataques a estas minorias sexuais e culturais só parecem medonhos no Ocidente que justamente as tolera e as defende legalmente.  

Eu não sei se a autora inocentinha daquele editorial patético  alguma vez pensou nisto, se é que pensar é uma tarefa a que dedique alguns minutos por dia. Sei apenas que quando se condena algo é bom que não se tergiverse ou esconda partes do mesmo mal que se pretende condenar. 

Em tempos publiquei aqui, por mero divertimento e desfastio, um apontamento sobre um livrinho  com quase 400 páginas publicado em 1908. O seu autor era um senhor abade Louis Bethleem e a obra ia já na quarta edição. O título dizia tudo "Romans a lire & Romans a proscrire (essai de classification au point de vue moraldes rincipaux romans et romanciers de notre epoque 1800-1908- avec notes et indications pratiques) . Um autêntico petisco literário  que, contudo, sobre a senhora articulista tem uma vantagem: foi escrito ha mais de um século, atem-se à "moral" católica da época e dá uma gigantesca indicação da literatura de ficção da época e faz-nos rir a bandeiras despregadas.  Direi mesmo que fora das enciclopédias será difícil encontrar uma tal quantidade de referências a escritores com obra publicada. Quanto à crítica dàs obras vale a pena ler não só porque aquilo é, de certo modo, uma pequena história da mentalidade da época mas também dos temas literários em voga.

Por outras palavras, o abade documentou-se bem ao contrário da autora do infeliz editorial

`*na vinheta capa da obra citada