o leitor (im)penitente 285
uma grande escritora, uma grande Senhora
mcr, 2 -4-25
Conheci um largo número de escritores mais por acaso do que por vontade de os procurar ou conhecer. O facto de durante anos ter frequentado as "correntes de escritas" e o "Literatura em viagem", festivais inventados por Francisco Guedes, carreou para o meu inexistente \album mais dois ou três quarteirões de autores
A leitura, vício provavelmente mais caro do que a cocaína, o facto de, durante décadas, frequentar livrarias (no tempo em que havia sempre uma pequena ou grande tertúlia que lá se juntava) também controbuiram para acabar por conhecer mais uns tantos romancistas e poetas (e aí destaco Herberto Hélder e Manuel da Fonseca, com quem passei uma inteira ttarde à conversa e de que guardo uma anedota que não resisto a contar; Manuel da Fonseca entendeu a certo momento folhear um livro escolar para a disciplina de português. Ao descobrir um poema seu ficou comovido e contente, Continuando a folhear o mesmo exemplar foi dando com mais contribuições suas que, a certa altura, o perturbaram. "Esta gente não terá mais autores a quem pilhar poemas?"
Em boa verdade aquilo já ia ou ultrapassava a dezena, se é que bem me lembro.
O livreiro ainda tentou dizer que aquilo era "uma homenagem", Eu achei que para homenagem a coisa ia longe demais. Fonseca, já irritado e contristado jurava que ninguém lhe pedira autorização. ou sequer o avisara.
alguém, também presente, opinou que aquilo era um roubo ou pelo menos uma maneira de fugir a direitos deautor. O Herberto que seguira a cena, calado, tentou deitar água na fervura: "Ó Manuel a mim ninguém me publica em livros para a juventude analfabeta!"
Ainda estive para afirmar que HH não corria o risco de ser seleccionado por nenhuma professorinha autora de livros bem rendosos. A razão era simples e óbvia: não o entendia!
Ambos fazem parte da minha especial selecçao de autores por quem nutro admiração e carinho. Há mais, desde o Fernando Assis Pacheco, o Manuel António Pina, o José Cardozo Pires e a Isabel da Nóbrega que, ao fim e ao cabo é o motivo deste folhetim.
Conheci a Isabel em Matosinhos por ocasião de uma edição do LEV no qual colaborava como habitual moderador de uma ou duas mesas .
Logo na sessão inaugural, fiquei intrigado por uma senhora bem mais velha, bonita e discreta mas elegantemente vestida. Era, logo ali, uma presença fascinante no meio de uma boa centena de pessoas displicentemente vestidas, a maioria abaixo do cinquenta anos. Nesse mesmo dia, à noite, eis que ela reaparece com uma roupa diferente, igualmente elegante e por mero acaso sentou-se na mesa em que, com mais gente, eu estava. Depois de concluir (sem esforço) que ela seria escritora, entendi que talvez valesse a pena tentar conversar com ela. Na primeira meia hora, depois de reparar nos lindíssimos olhos dela, hum rosto que apesar da muita idade conservava traços de uma neleza notável, e porque não sabia o nome dela, fiz de cavalheiro, apresentei-me e ela finalmente disse que se chamava Isabel da Nóbrega. Dei um salto (onterior, pelo menos). Nos anos sessenta lera o seu admirável romance "Viver com os outros" e ao longo de uma boa quarentena de anos relera-o inteiramente, ou apenas certas partes . A coisa era simples, Se por algum acaso, mexia na estante onde o livro estava, acabava por o agarrar e folhear durante alguns minutos ou mais longamente quando acertava num trecho particularmente interessante. E disse-lhe isso mesmo fazendo notar que aquilo também ocorria com mais umas duas ou três dúzias de autores, poetas sobretudo.
A partir dessa notite mágica, encontrámo-mos todos os dias nas mesas onde à noite se discutia forte e feio os livros, os autores, tudo. Quando o LEV terminou tive a ousadia de lhe oferecer um livro meu sob o pretexto que durante a viagem de regresso aquilo a induziria a dormir no cmboio.
Dois dias depois, toca o telefone e, do outro lao, estava uma Isabel a agradecer-me pela segunda vez o livrinho e a comenta-lo com uma gentileza e afeição que me embeveceu. Que lera o livro de fio a pavio que até já o emprestara a pesoa amiga, enfim, cresci durante o telefonema mais de dez centímetros. Melhor dizenfo, o meu ego cresceu que eu continuo com a mesma fraca figura de sempre.
Ainda falámos mais um par de vezes, prometi (e muiseravelmente não cumpri) visitá-la, e comecei a comprar nos alfarrabistas o livro para oferecer a amigos leitores seleccionafos. Em boa verdade foram poucas as vezes em que encontrei o "viver... . Faço o mesmo com mais três livros todos de Aquilino ("A retirada dos 10 000", "É a guerra" e "Alemanha ensanguentada", com alguns Eças (sempre não ficção...) e com o Prevert E recentemente, descobrindo alguns Voltaire repetidos já estou a preparar nova ronda de ofertas)
Quem vê a gravura, logo percebe que tudo isto é provocado pela úliima edição da Revista do Expresso onde se recorda um pouco a Isabel e a merdosa retirada das dedicatórias nos livros que Saramago publicou enquanto viveu com ela.
Um conhecido poeta, meu amigo, uma vez afirmou: "Saramago? Não li e não gostei " Eu li alguns mas nunca fui especial admirador. No dia do Nobel ao encontrar-me com o meu tio Quim, um grande leitor e um quase irmão, ambos lamentámos que o prémio não tivesse ido para o Cardoso Pires.
Conviria recordar que até Isabel da Nóbrega encontrar Saramago a produção literária dele era de qualidade mais do que medíocre. Foi ela, como de resto consta por toda a parte, quem o educou literariamente e não só, quem o propôs ou impôs nos círculos literários onde brilhava. Para os mais conhecedores há mesmo um rasto visível dela no mais conhecidos livros por ele escritos enquanto viveu com ela.
Alguém me dirá que a troca de companheira de vida por uma mulher mais nova (a boi velho erva tenra...) é já uma tradição no meio literário. É provável, basta ver a lista de escriitores qie no ocaso da vida se separam da antiga mulher (Cela, por exemplo) ou já vúvos começam o que julgam ser uma nova vida com mulheres que poderiam ser suas filhas. Em certos casos, persiste a ideia de que, nestes enredos, uma das partes não estará inteiramente de boa fé...
Todavia, não me interessa especialmente saber das razões ou desrazões dos encontros e desencontros amorosos.
Há porém, na retirada das dedicatórias algo que me parece uma espécie de velhacaria. Aqueles livros que levam uma dedicatória normalmente a justificá-los dizem-nos muito da história, da origem, da sus factura, da sua oficina. Costuma dizer-se que por trás de um grande homem há sempre uma mulher e isso é extensível a toda a espécie de criadores e artistas. Há mesmo um caso extraordinário que revela até que ponto a sobrevivência de uma obra se deve à mulher do escritor. Refiro-me ao casal Ossip/Nadejda Mandelstam que, depois da prisão e assassínio do marido, conseguiu decorar parte da obra deste e mais tarde publicá-la. Ao mesmo tempo, escritora de grande talento e perspicácia, escreveu umas memórias que não são apenas brilhantes mas também mostram muito do clima intelectual e político da finada URSS. (está traduzida em português: "contra toda a esperança", Imprensa da Universidade de Lisboa).
Deixemos, no entanto, este apontamento sobre alguém que também não percebeu que, ao eliminar uma dedicatória, assim se diminuía e tornava menos legível o livro , para recomendar a leitura de "Viver om os outros" um grande romance, que mantém toda a frescura inicial que me encantou. E recordar a escritora que ao longo de muitos anos publicou mais de três mil crónicas de que valeria a pena, editar uma antologia.