o leitor (im)penitente 286
Há mortes e mortes mas, no fim, nem todas vão dar ao mesmo
E no caso em apreço há um quarteirão de grandes romances
mcr, 16-4-25
Eu sei que no Sudão, em Gaza ou na Ucrânia as pessoas caem que nem tordos, inutilmente , sem especial ganho para o matador como uma longa teoria de guerras e massacres (basta não ir mais longe do que o século passado para perceber o verso de Prévert Oh Barbara quelle conerie la guerre...)
Desta feita não destas guerras que quero falar, destas mortes, da imensa canalhice de um presidente que confunde (por imbecilidade, burrice, má fé ou canalhice) agressor e agredido afirmando que foi este que iniciou uma guerra contra um inimigo vinte vezes mais poderoso, mas apenas de três mortes infelizmente esperadas dada a idade dos defuntos. Comecemos por Mário Vargas Llosa, peruano, Nobel, autor de mais de um quarteirão de grandes livros, quase todos romances. MVL é, de certo modo o mais importante escritor dessa fileira de autores sul americanos que surpreenderam o mundo com uma escrita miraculosa, inebriante, inteligente, muitas vezes divertida mas sempre, sempre profundamente comprometida com o povo do continente de onde vinham ou, atrevo-me, com todos os povos do mundo. Quando digo "o mais importante escritor, quero apenas referir a quantidade de obras que escreveu mesmo sublinhando que, julgo, "1oo anos de solidão" a melhor obra deste enorme conjunto de autores e obras
(claro que não esqueço uma boa dúzia, mais, até, de autores da mesma época (entre todos, Rulfo um mexicano genial). Por várias razões, mesmo algumas não literárias, MVL marcou os último 60 anos. Inclusive, a sua famosa campanha presidencial em que foi derrotado por um cavalheiro chamado Alberto Fujimori que não chegou ao fim do mandato e que foi condenado por corrupção e violação de direitos humanos, depois de ter andado fugido durante anos.
Além do Nobel, MVL teve todos os grandes prémios literários hispano-americanos mais conhecidos ("tómulo Gallegos", "Cervantes", "Pricipe de Astúrias...")
Dentre as suas múltiplas campanhas em defesa da liberdade, há que destacar a defesa de uma grande obra, eventualmente, a mais importante publicada no sec XX em Cuba "Paradiso" (de José Lezama Lima que, com Guillermo Cabrera Infante e Alejo Carpentier compõe o grande trio de escritores cubanos do sec XX Todavia, foi a defesa de Herberto Padilla, o poeta que ganhou o premio da Union Nacional de Escritores Cubanos de 1968. A direcção desta instituição discordou do júri e fez udo quanto podia para alterar a distinção a Padilla (e tmbém ao premiado de teatro, Anton Arrufat) Padilla chegou a estar preso e posteriormente exilou-se. O outro premiado só conseguiu ver a sua peça (Los siete contra Tebas) representada vinte anos depois!!!
(tive desta história que fede a processo de Moscovo tropical, conhecimento em primeira mão graças a Ricardo Salvat, professor, ensaísta e encenador teatral que foi encenador do CITAC em 1969, Salvat, segundo recordo, esteve como membro de um júri em Cuba no ano de 68 e terá mesmo sido um dos premiadores de Arrufat. contou-me todas estas tristes andanças literário-políticas cubanas durante a sua estadia em Portugal de onde foi expulso na sequência da crise de Coimbra1969)
MVL nunca deixou de se bater pela liberdade e pelos direitos humanos mesmo quando, derrotado nas eleições presidenciais e obviamente acusado pela "esquerda" peruana de fazer parte da direita mais reaccionária, pode assistir ao fim inglório de seu adversário envolto nua teia de corrupção e crimes contra os direitos humanos que, primeiro o fizerram fugir para o Japão e posteriormente ser julgado e condenado a uma dura pena de prisão no Peru.
Tive oportunidade de, numa estadia em Paris, encontrar no pequeno hotel onde me alojava uma humilde empregada peruana que escolhera aquele hotel para trabalhar por ficar em frente a uma casa onde MVL durante alguns anos vivera (ou vivia ainda). Ainda não recebera nenhuma das grandes distinções literárias mas aquela senhora peruana tinha um enorme orgulho naquele escritor . Num rompante fui à "librairie espagnole", (que era perto, na rue de Seine) comprei e ofereci-lhe dois livros de MVL. Ao fim de uns dias, já lera o primeiro e preparava-se para o segundo com entusiasmo. O hotel foi vendido e actualmente no seu lugar está um cinco estrelas fora das possibilidades da minha bolsa.
Dos outros dois mortos que também foram meus amigos escreverei mais tarde pois este texto alongou-se e outras tarefas interromperam os meus projectos. A preguiça e o facto de ser um trapalhão velho e relho ajudaram.
Boa Páscoa e aproveitem a ocasião para ler este admirável Mario Vargas Llosa
*para quem já leu vários livros deste autor , recomendaria uma interessante e inteligente autobiografia com o título "pez en el água". Ignoro se há tradução em português mas garanto qe vale a pena o esforço.