O leitor (im)penitente 80
Na morte do autor de "A morte sem mestre"
“Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho de muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
Loucamente
por um caçador de que nada se sabia. E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.
Não havia animal que no seu pelo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.”
Morreu o Herberto. Era assim que o grupo de amigos que em tempos (oh, há quanto tempo...) se juntava numa discreta livraria ali no largo Trindade Coelho, que comummente chamam da Misericórdia.
Recordo o Herberto à conversa com o Manuel da Fonseca na livraria discretíssima que depois se chamou Artes & Letras e agora se chama nada. Um senhorio demasiado ganancioso enviou o Luís Gomes para outras paragens. Ficou apenas o resistente José Vicente com a sua Olisipo.
O Herberto apreciava a zona e uma que outra cervejola com amigos numa pequena tasca à entrada da Calçado do Duque.
E era afectuoso com os leitores que chegavam com um abraço, um agradecimento.
Devo-lhe as alegrias mais extremas, os momentos mais terríveis graças ao mistério da sua poesia que um outro morto (António Manso Pinheiro, amigo de infância, de adolescência, de toda a vida..., ele mesmo editor ) me guiou na descoberta de HH no início dos anos 60. Mais de meio século! Cinquenta e tal anos iluminados pela obra sempre renascida, sempre diferente, deste homem que é, sem qualquer dúvida, o maior poeta português da segunda metade do século XX. E dos primeiros 15 anos do século XXI, entenda-se.
Tenho como a maior perda da minha biblioteca o desaparecimento de “electronicolirica” que algum amigo transviado, mais amigo de Helder que de mim que o recebia confiado, fez mão baixa. Não perdoo tanto mais que nunca mais consegui pôr a vista nalgum exemplar dessa obra.
Morreu, pois. Deveria dizer que se o homem morre, a obra fica mas não é bem assim.
É que enquanto foi vivo, nós seus leitores, nós os happy few, estávamos sempre à espera de mais um poema. Agora já não esperamos nada ou muito pouco. Algum original perdido numa gaveta. Mas não é a mesma coisa. O Herberto só publicava depois de reexaminar e voltar a examinar o texto produzido. E, quantas vezes, mesmo depois de publicado, o reescreveu. E quantas vezes eliminou poemas nas diferentes versões da sua obra toda.
“ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
................
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar
-a morte é passa, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma palavra nova.”
.............
Herberto, seguramente que ajudou muitos vivos. Muitos leitores que mesmo desolados, agora, relembram a alegria e o mistério da palavra poético no que ela terá de mais definitivo, de mais terrível e de mais puro.
* O poema (melhor: os extractos de poema) consta do livro "A faca não cort o fogo (súmula & inédita) publicado por Assírio & Alvim em 2008.