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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

...

Incursões, 08.09.05

biombo nambam:
duas civilizaçõesem contacto

Como nos partimos desta ilha dos ladrões para o porto de Liampó,
e do que passámos até chegar a um rio a que chamavam Xingrau
[...]
António de Faria, vendo um menino que também ali estava, de doze até treze anos, alvo e bem assombrado, lhe perguntou donde vinha aquela lantea (embarcação) ou porque viera ali ter, de quem era, e para onde ia; o qual lhe respondeu:
- Era do sem ventura de meu pai, a quem caiu em sorte triste e desventurada, tornar-de-Ihes vós outros em menos de uma hora o que ele ganhou em mais de trinta anos, o qual vinha de um lugar que se chama Quoamão, onde a troco de prata com­ toda essa fazenda que aí tendes, para a ir vender aos juncos de Sião que estão no porto de Comhay, e porque lhe faltava a água, quis a sua triste fortuna que a visse tomar aqui para vós lhe tomardes sua fazenda sem nenhum temor da justiça do céu...
António de Faria lhe disse que não chorasse e o afagou quanto pôde, prometendo­ – lhe que o trataria como filho, porque nessa conta o tinha e o teria sempre, a que o moço, olhando para ele, respondeu com um sorriso a modo de escárnio:
- Não cuides de mim, ainda que me vejas menino, que sou tão parvo que possa cuidar (esperar) de ti que roubando-me meu pai, me hajas a mim tratar como filho, e se és esse que dizes, eu te peço muito muito muito por amor do teu Deus, que me deixes botar a nado até essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu pai verdadeiro, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o vejo estar me cho­rando, que viver entre gente tão má como vós outro sois.
Alguns dos que ali estavam o repreenderam e lhe disseram que não dissesse aquilo, porque não era bem dito, ao que ele respondeu:
- Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deus com os beiços untados, como homens a quem parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos proíbe de tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso cas­tigo de sua divina justiça.
Espantado António de Faria das razões deste moço, lhe disse se queria ser cristão, a que o moço, pondo os olhos nele, respondeu:
- Não entendo isso que dizes, nem sei que coisa é essa que me dizes; explica-ma primeiro e então te responderei a propósito.
E declarando-lhe António de Faria por palavras discretas, ao seu modo, lhe não respondeu o moço a elas, mas pondo os olhos no céu, com as mãos levantadas disse chorando:
- Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra.
E não querendo mais responder a pergunta nenhuma, se foi pôr a um canto a cho­rar, sem em três dias querer comer coisa nenhuma de quantas lhe davam.
[…]
Fernão Mendes Pinto (s.XVI)- Peregrinação

PENSAR...O TEMPO

Incursões, 31.08.05

Sim, meu caro Lucílio, reivindica a propriedade da tua pessoa; recolhe e põe em segurança o tempo que até agora te foi subtraído, roubado, ou que tu deixavas escapar. Acredita-me, as coisas se passam exactamente como estou dizendo: alguns momentos nos são arrancados, outros escamotea­dos, outros mais nos escorrem pelos dedos
[….]
Cita-me um homem que saiba dar ao tempo o seu prémio, reconhecer o valor de um dia, com­preender que morre a cada dia. Nós nos engana­mos quando pensamos ver a morte diante de nós: ela já está em grande parte atrás de nós. Tudo o que pertence ao passado é do âmbito da morte. Portanto, meu caro Lucílio, age como dizes na tua carta: sê o proprietário de todas as horas. Serás menos escravo do amanhã, se te tornares dono do presente. Enquanto a remetemos para mais tarde, a vida passa. Nada, Lucílio, nos pertence; só o tempo é nosso. E o único bem, fugitivo e submetido ao acaso, que a natureza nos deu: qualquer pessoa pode privar-nos dele.

Séneca Cartas a Lucílio


in As relações humanas – A amizade, os livros, a filosofia,o sábio E a atitude perante a morte –ed. Landy –Introd. e trad. de Renata Maria Parreira Cordeiro

FERNÃO DE MAGALHÃES

Incursões, 20.08.05
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A Igreja diz que a terra é achatada, mas sei que ela é redonda, porque vi a sombra na Lua
, e tenho mais fé numa sombra do que na Igreja.
Fernão de Magalhães
(1480? - 1521), único português a ter o seu nome nas estrelas

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Incursões, 17.08.05
Viver sempre perfeitamente feliz.

A nossa alma tem em si mesma esse poder de ficar indiferente perante as coisas indiferentes. Ficará indiferente se considerar cada uma delas analiticamente e em bloco, lembrando-se que nenhuma nos impõe opinião a seu respeito nem nos vem solicitar; os objectos estão aí imóveis e somos nós que formamos os nossos juízos sobre eles e os entalhamos, por dizê-lo assim, em nós mesmos; e está em nosso poder não os gravar e, se eles se insinuam nalgum cantinho da alma, apagá-los de repente.Depois os cuidados que te pungem não duram, bem depressa deixará de viver. E por que tens um penoso sentimento de serem assim as coisas? Se são conformes à natureza aceita-as alegremente e sejam-te propícias. Se vão ao arrepio da natureza, busca o que for conforme à tua natureza, e corre nessa direcção, fosse-te ela menos propícia; merece indulgência quem procura o seu próprio bem.


Marco Aurélio, in 'Pensamentos'
recolhido em -http://citador.weblog.com.pt/

LIBERDADE-IGUALDADE-FRATERNIDADE

Incursões, 14.07.05
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claude monet
Quartier libre


J'ai mis mon képi dans la cage
et je suis sorti avec l'oiseau sur la tête
Alors
on ne salue plus
a demandé le commandant
Non
on ne salue plus
a répondu l'oiseau
Ah bon
excusez moi je croyais qu'on saluait
a dit le commandant
Vous êtes tout excusé tout le monde peut se tromper
a dit l'oiseau.


Jacques Prévert
, Paroles

O ESTATUÁRIO

Incursões, 29.06.05
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Michelangelo, David
«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, daí uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis, não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.»

Padre António Vieira, (s.XVII) , pregando em defesa dos índios brasileiros - in Sermão do Espírito Santo