Arre que faz frio ...
mcr, 27 de Dezembro, 2020-12-21
O doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, catedrático de Finanças em Coimbra era um dos poucos mestres que lá fora se conheciam. Além disso, que não era pouco, era um professor democrata, um dos da “oposicrática” tradicional coimbrã, ligado aos velhos círculos remanescentes do antigo Partido Socialista Português.
Os alunos achavam-no ligeiramente caturra mas respeitavam-lhe a sabedoria e perdoavam-lhe a exigência feroz com que ele defendia certos termos das suas lições. De resto, a “sebenta” era da sua autoria e, de certo modo, um modelo de clareza.
Quando começavam as aulas, o velho senhor perorava uns instantes para dar as boas vindas aos novos alunos. Já não me lembro dos termos exactos (eu, aconselhado pelo Pedro Mendes de Abreu, amigo quase irmão, oferecia ao ajudante do bedel duas garrafas de whisky por ano. Uma logo no começo do ano lectivo e outra lá para a primavera. Com isso garantia uma persistente miopia do funcionário que nunca dava conta da minha falta.) poe rarear ao máximo as minhas aparições nos sinistros Gerais.
De todo o modo aquilo começava por um olhar melancólico pela janela, uma observação sobre o Outono e o fim da abundancia, do sol e do calor mas terminava sempre por afirmar que “no coração do velho mestre” irrompia aa destempo a primavera com a chegada dos novos alunos.
Ora hoje, quando me levantei pelas oito da matina, verifiquei que o telemóvel marcava 3 graus! Três miseráveis graus, santíssima mãe! Arrium porrium catanorum cumque! Esta frialdade invernosa, recorda os dias frios de Coimbra que em frios invernais e calores tropicais no Verão não pedia meças a ninguém.
Entretanto, depois de me ter aventurado cem metros para beber a primeira bica e comprar o jornal (nenhum dia decente começa sem essa amável antiquíssima rotina), li o correio e dei-me de caras com uma leitor anónimo que dizia ser leitor constante e que eu teria uma imensa erudição (sic). Despi logo metade da roupa pois o calor irradiou do coração para o cérebro daí para outras vísceras menores e aqueceu o pobre e velho corpinho que ostento. Devo, em meu abono, dizer que me tocou mais a constância do leitor do que o elogio gentil mas demasiado à erudição.
O que o leitor amabilíssimo não sabe é que eu sou do tempo dos afonsinos. Em bom rigor, já deveria ter deixado estas paragens terrenais que quando nasci nada me prometia mais do que sessenta, sessenta e poucos. Mesmo a geração seguinte não atingia estes 79 feitos e perfeitos (é um modo de dizer!...) ou melhor esta dificultosa navegação já pelos oitentinhas.
Tudo para esclarecer o amável que isto, esta revoada de conhecimentos, não demasiado firmes mas atrevidos, é fruto do tempo em que fui lendo, ouvindo (e eu ouvi tudo o que podia, isso sim uma virtude) . Ainda por cima, o futebol não era a minha praia (se bem que só na praia o joguei, mal e porcamente, valendo-me dos encontrões mais do que das fintas). Recordo, a esse propósito que nos jogos diários, eram os dois irmãos Xico e Luís Neves, os amigos mais velhos que escolhiam as equipas. Eu fazia sempre parte da equipa do Luís, que escolhia em 2º lugar e era sempre, ou quase, o último a ser recrutado. E só era porque naquele grupo de miúdos todos jogavam!
De modo que o meu refúgio era a leitura. Ainda por cima sou mais curioso do que um gato. Neste capítulo só não tenho apetência pelo mexerico. Nada, raspas de nada. Não sou fuxiqueiro e se alguma escândalo me chega logo o esqueço. Entra a cem e sai a duzentos...
Com os anos, a leitura já era mais um vício do que necessidade de saber. Ainda me lembro, e já aqui o contei, que durante uma longa doença consumi todo o material impresso da casa de meus avós, incluindo-se no lote umas centenas de livros de amor de colecções populares que se chamavam pérola, madrepérolas e tolices do mesmo. Foi aí que encontrei a srª dª Trini de Figueroa e a grande sacerdotisa do livro de amor Corín Tellado. Mas já antes tinha conhecido o inolvidável “John, chauffeur russo” do celebérrimo Max du Veuzit.
Quando, comecei o primeiro namoro a sério com uma belíssima rapariga que me tornou alvo de inveja e de estupefacção “como é que aquele caramelo maljeitoso engatou aquela miúda?”, passei horas à espera dela que, é azar meu que perdura, pois, depois do almoço chegava sempre com uma boa meia hora académica de atraso. Para essa eventualidade descobri que a colecção “Que sais-je?” (que felizmente, ainda mexe) era ideal. Livros formato bolso, 150 páginas em média, textos claros, precisos, bem ordenados, uma bibliografia excelente para quem quisesse explorar mais a fundo aquele assunto e um preço razoável. Naquele tempo andavam pelos 15 escudos, talvez menos. Nem imaginam o que aprendi. Aliás, quando oiço falar de alguma coisa de que nada sei, o primeiro passo a dar é ir ver se há algum “qsj” dobre o tema. Normalmente há e isso é uma ajuda extraordinária.
O segundo truque passa pelas revistas. Hoje há poucas revistas generalistas mas decentemente culturais. Naquele tempo produziam-se às carradas. Para não ir mais longe, no meu tempo de faculdade, nunca perdi um número da “Seara Nova”, da “Vértice” e, depois, de “O Tempo e o Modo”.
Isto para não referiras publicações que vinham de França desde “Le Monde”que tinha uma selecção semanal magnífica, à “Europe” que ainda se editava há poucos anos. Foi o Joaquim Namorado, grande e saudoso amigo, quem me orientou para as revistas, afirmando que para se saber qualquer coisa e estar ao corrente das novidades, artísticas, políticas, literárias ou científicas, nada melhor que as revistas. Com o tempo chegaram-me as espanholas as italianas e uma que outra anglo-saxónica desde que tratasse de poesia.
E, obviamente os jornais. Eu não passo sem o Público, o LE Monde, o El País, o La Reppublica. Mesmo que, em muitos casos, só leia uma ou duas edições, mormente de fim de semana. E só há muito pouco tempo, suspendi a compra de uma boa dúzia de revistas de história.... agora só compro um que outro número que me chame irremediavelmente a atenção.
Portanto, leitor amigo, esta alegada erudição é fruto de uma série de circunstâncias acidentais, da curiosidade e, vamos lá de uma memória que vai começando a dar sinais de si.
Finalmente, escrever mesmo que seja apenas o folhetim quase diário no blog obriga-me a pensar algumas coisas, a relacioná-las e a tentar transmitir o que penso se possível com clareza, algum humor (quando cabe) e a tentar conversar com os desconhecidos desse lado do ecrã.
E, claro, mesmo neste dia frio (e os velhos sentem o frio com uma acutilância tremenda!...) as suas palavras amáveis aqueceram-me mais do que pode pensar.
na vinheta: estante das explorações portuguesas. Como curiosidade, do lado esquerdo, no alto, a escuro, está todo o José de Almada, operoso investigador da documentação diplomatica portuguesa em Africa e abaixo, em tom claro, todo o extraorfinário Henrique de Carvalho, autor da "Expedição Portuguesa ao Muatiânvua", oito belíssimos volumes excelentemente ilustrados e sem dúvida um dos melhores livroa mundiais sobre exploraçoes africanas. Saloente-se que a obra de Almada está completa com dois gordos dossiers de mapas (a vermelho à esquerda dos outros volumes) que descobi num loja de velharias e comprei por 20 euros!