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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Folhetins da riqueza e da pobreza (1)

sociodialetica, 15.06.12

Pontos de partida

 

1. Partamos de três hipóteses que podem ser provadas, mas que dispensamos de o fazer:

  1. Produzir é criar valor novo, é aumentar a massa do rendimento existente. Criar valor novo exige a realização de trabalho humano. Claro que na atividade produtiva não basta trabalho, tem de haver máquinas e equipamentos, matérias-primas, energia e organização. Todos estes recursos produtivos são importantes, todos estes recursos produtivos permitem que uns produzam mais do que outros e que, mesmo criando a mesma quantidade de valor novo se apropriem de mais ou menos do que os outros, utilizando para tal a concorrência, os preços. Esse valor novo depois de produzido é repartido (salários e honorários, lucros das empresas, juros, rendas, impostos, etc.) e utilizado (para aumentar a produção, para consumir, para doar, etc.).
  2. A sociedade não é homogénea, antes pelo contrário. Uns nascem em berço de ouro e terão tudo toda a vida sem necessitarem de trabalhar e outros trabalham duro toda a vida e não têm o que necessitam para tratar adequadamente da saúde, da educação, da habitação, da própria sobrevivência quotidiana. Chamemos a essas diversas camadas grupos sociais. Muitos dos comportamentos desses grupos sociais podem ser convergentes (ex. promoção da cultura, democratização do ensino, defesa das liberdades formais, etc.) e outros nunca o poderão, porque o que é bom para uns pode ser mau para outros (ex. liberdade material, aumento das diferenças na distribuição do rendimento, influência na atividade política, etc.). Há grupos sociais que têm características próximas de outros, há grupos que são radicalmente diferentes. Se falarmos em termos estritamente económicos podemos dizer que esses grupos são classes sociais. Se incluirmos nesta designação a autoconsciência da sua posição na sociedade, do que os diferencia e do que os aproxima, então muitos grupos sociais não chegam a ser classes sociais. Entre o grupo e a classe entrepõe-se a organização política e ideológica, a força dos meios de comunicação.
  3. A sociedade em que vivemos é capitalista, tendo definido os seus contornos modernos com a revolução industrial inglesa que progressivamente se espalhou por todo o mundo. Uns são proprietários de riqueza, de terras, de fábricas, de serviços, de títulos da bolsa, outros não têm nenhuma propriedade. Entre estes dois extremos há várias intensidades de propriedade. Propriedade é poder de múltiplas formas, desde maiores possibilidades de educação e a integração em redes sociais de elites, desde controlar a produção de coisas decisivas para as populações até terem maiores possibilidades de influenciar a forma como as pessoas em geral pensam, nomeadamente via meios de informação. Há pessoas que conseguem furar individual esta forma de organização fortemente hierarquizada, há muitas formas e processos de alterar a correlação de forças sociais, mas grosso modo poder económico, mais propriedade, e mais nevrálgicas, significa maior possibilidade de influenciar as opções culturais, as ideias que circulam e aquelas que nunca circulam, de fazer opinião pública, de “encostar a faca ao pescoço” dos interesses coletivos, de pertencer a uma elite que partilha entre si o poder político. Por palavras simples, de uma forma estrutural e global o poder económico influencia decisivamente e controla a atividade política e ideológica da sociedade. A democracia altera a forma como tal se processa (por exemplo, em vez da censura ou da proibição de divulgação de “ideias subversivas” organiza-se de certo modo os meios de informação e quase se silencia as leituras diferentes do “politicamente correto”.

2. É partindo destas premissas que vamos fazer uma incursão histórica sobre diversas formas assumidas ao longo dos anos o que podemos designar pela luta entre a vontade de aumentar a apropriação do valor novo por parte dos proprietários da riqueza e dos meios de produção (entenda-se, da grande riqueza e dos grandes meios de negócio) e as dificuldades com que se defrontam. Conflito entre querer ganhar mais e isso exigir ganhar menos do que desejariam. Conflito que desemboca em novas formas de organização do capitalismo, isto é, da sociedade em que vivemos. Incursão histórica que poderá ajudar a entender melhor a situação que atualmente vivemos.

 

 

Salários: custo e mercado

 

3. O primeiro conflito resulta do simples facto de que o aumento dos salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem faz diminuir os lucros, mantendo-se tudo o resto constante. Assim sendo, e pretendendo os proprietários de empresas terem o maior lucro possível dentro das estratégias que definiram, o mais conveniente seria diminuir os salários. E como podem diminuir os salários? Uma forma é diminuir o montante pago em remunerações, não podendo ir abaixo do que é estritamente necessário para a sobrevivência e reprodução biológica no quadro de uma determinada sociedade. Admitindo que os trabalhadores não estão disponíveis para “solução” surgem diferentes formas de luta e embora os empresários tenham sempre mais força que os seus opositores, o que ganham por uma lado (pagando menos) perdem por outro, pelo menos em parte (greves, instabilidade organizativa, ausência de uma cultura de empresa, etc.). Então, como foi recomendado frequentemente, uma alternativa é através do aumento dos preços, aquilo que frequentemente se designa por inflação. Eis maneiras eficientes de diminuir o salário.

Surge uma dificuldade. Ter lucros não é só produzir mercadorias, sejam elas bens materiais ou serviços, é preciso vendê-las. Estando demonstrada a impossibilidade de só se produzir e vender bens de luxo, se diminuem os salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem (e profissões liberais), grande maioria da população, estão a diminuir o seu mercado, isto é, a restringir as possibilidades de efetivamente terem lucros expressos em moeda.

“Preso por ter cão e presos por não o ter”. Um dilema, que poderia o bom senso tentar resolver dizendo uma frase sábia: “é preciso encontrar o equilíbrio, é nas opções intermédias que está a sensatez”. Afirmação que morre à nascença porque os capitalistas não raciocinam coletivamente. Raciocinam e atuam individualmente, num processo de concorrência dentro do sector, no país ou à escala mundial, mesmo entre sectores, procurando diversificar as atividades e aproveitar o que é mais rentável. Mas há sempre uma saída, um caminho que agrada a quem tem o poder económico e capacidade de levar à prática as grandes inovações.

A história mostrou duas saídas. Uma primeira é frequentemente atribuída a Ford: “salários mais altos e maior produtividade”. Por um lado aumenta-se estrondosamente a produtividade do sector industrial (ex. produção em cadeia, automação), o que permite que os lucros aumentem mesmo com a manutenção dos salários. Por outro lado o aumento da produtividade diminui os preços das mercadorias pelo que com os mesmos salários os trabalhadores podem melhorar o seu poder aquisitivo. Por outro estão criadas as condições para se poder também aumentar os salários nominais porque o aumento dos lucros permite isso. e assim se alarga o seu próprio mercado, criando poder de compra para absorver os bens que são postos à venda.

Façamos um parêntesis. Do que foi disto não se pode deduzir que só se pode aumentar os salários se houver um aumento da produtividade. Essa afirmação não é uma constatação empírica, é um juízo normativo: para se mantarem os lucros, para se manter a mesma carga tributária sobre as empresas e admitindo que tudo o resto se mantem constante só um aumento da produtividade permite um aumento dos salários. Uma normatividade que muitas vezes não se verifica, como muitos testes econométricos o demonstram. Além disso a relação entre produtividade e salários não é só daquela para estes. Também há a relação inversa: em algumas situações históricas foram os salários mais elevados que geraram desenvolvimento. Estes estimularam o aumento da produtividade, estimularam a utilização de mão-de-obra mais qualificada, estimularam a inovação.

Mas não se fica por aí as possibilidades de resolver o conflito. Infelizmente as empresas precisam dos trabalhadores, pensarão muitos que olham para as suas empresas não como um espaço social mas como um “porquinho de capitalização”. Ainda não há robots que não comem, não precisam de habitação, não têm ambições educativas e culturais e para se reproduzirem não precisam de sexo. E o tal desenvolvimento tecnológico exige trabalhadores mais qualificados, com mais educação. E a educação para além de conhecimentos transmite conceções de dignidade, de leitura da sociedade, de acesso a conhecimentos científicos “subversivos”. E se sempre que vão para o desemprego correm o risco a morrerem de fome pode gerar-se escassez de braços e cérebros para trabalhar, sobretudo em épocas em que os negócios correm às mil maravilhas. E se estão doentes, não se correrá também esse risco? Se precisam de trabalhadores que não morrem quando estão no desemprego, que se podem tratar e educar, só parece haver uma hipótese: pagar salários que permitam eles precaverem-se nessas fases funestas, que possam aprender e melhoras as suas capacidades. A não ser que… é verdade, há outra saída, ser o Estado a tratar disso: educação pública, assistência pública na doença, um conjunto de serviços pagos pelo Estado. Dessa forma poder-se-ia conseguir pagar menos salários, mesmo que uma parte desse valor retido tenha que ser gasto em impostos.

E assim se foi fazendo muitos anos. O que se designa frequentemente por Estado-Providência é o resultado de três movimentos totalmente diferentes, é uma “unidade na ação” de forças antagónicas. Por um lado esse expediente é uma forma de cada empresa pagar menos salários e de uma parte dos encargos com essas atividades ser suportada pelos próprios trabalhadores por conta de outrem. Por um outro corresponde às exigências desses mesmos trabalhadores, é um pequeno resultado da sua luta por uma vida mais digna, lembrando que são cidadãos e não mão-de-obra. Este seria um filme a ser contado noutras histórias, em que se constataria que o chamado Estado Previdência foi a expressão política da afirmação do individualismo, fundamental para a própria expansão do capitalismo.

Retomando o nosso fio da miada e resumindo o que dissemos aqui estamos num dilema: aumentar ou diminuir lucros? Melhor, como conciliar reduzir salários e aumentar as vendas? Este é o primeiro conflito, tanto mais grave quanto estamos num capitalismo em que o seu núcleo central é a indústria, em que o crescimento e desenvolvimento económico passam fortemente pela expansão do mercado interno.

 

4. Como esta conversa já vai longa. Na próxima procuraremos referir o problema do abastecimento de matérias-primas.

(3) Ciclo de Negócio, Crise e CRISE DO EURO

sociodialetica, 23.08.11

(Continuação de artigos anteriores com o mesmo título [1] [2])

 

11. As fases do ciclo e as crises manifestam-se de acordo com as leis que as regem, mas assumindo formas, intensidades, interligações, harmonias e conflitos diferentes conforme as especificidades de cada momento, conforme os comportamentos típicos e efectivos dos intervenientes na sociedade, desde o Estado às empresas. As leis são regularidades explicitadas através da observação imediata das irregularidades, enquanto aparências de fogachos do acaso.

A crise que se iniciou em 2008 e que continuamos a viver é frequentemente comparada com a dramaticamente famosa crise de 1929/33 sobre a qual é importante recordar algumas imagens:

  • Tudo parece ter começado na bolsa. “Os sintomas da crise já tinham aparecido no início de 1929 (leve queda da Bolsa de Nova York), a produção industrial americana já havia começado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando um período de leve recessão econômica, e em setembro aconteceu a queda da Bolsa de Londres. Em agosto, a taxa de juros foi levada de 5% para 6%, numa tentativa de reduzir o volume de crédito, mas já era tarde demais. A orgia de lucros, finalmente, estourou a 24 de outubro de 1929: as cotações do Stock Exchange de Nova York afundaram 50% em um só dia. Estes preços estabilizaram-se ao longo do final de semana, para caírem drasticamente novamente na quarta feira, 28 de outubro. Muitos acionistas entraram em pânico. Cerca de 16,4 milhões de ações subitamente foram postas à venda na quinta feira, 29 de outubro, a “Quinta-Feira Negra”. O excesso de ações à venda, e a falta de compradores, fizeram com que os preços destas ações caísse cerca de 80%. Até o final do mês, seguiram-se novas derrubadas de preços e uma onda de falências. Milhares de acionistas perderam, literalmente da noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham.”
  • A violência do não pagamento das dívidas alterou radicalmente o sistema monetário: “Em 1931-1932, a Inglaterra, Canadá, a Escandinávia e os EUA abandonaram o padrão-ouro; em 1936, somaram-se a eles Holanda e Bélgica, finalmente também a França”. (...) “A desvalorização se mostrava incapaz de sustar as fugas de capitais, inclusive as reforçava. A maioria dos países latino-americanos, cujas moedas foram depreciadas em 1929 e 1930, recorreu ao controle cambial em 1931 e 1932. Na Europa, vários países aliaram igualmente a desvalorização e o controle cambial.”
  • A actividade económica produtiva decresce violentamente: “Em 1932, a produção mundial tinha caído 33% em valor; o comércio mundial, 60%; o Birô Internacional do Trabalho contabilizava 30 milhões de desempregados (cálculo modesto). Os países mais atingidos pela crise, além dos Estados Unidos, foram a Alemanha, Austrália, França, Itália, o Reino Unido [onde a taxa de desemprego atingiu 20%],  e especialmente o Canadá. (...) O comércio mundial desabou: reduziu-se a um terço do seu valor entre 1929 e 1933. O desabamento se devia, em parte, à queda pela metade dos preços-ouro mundiais. Os índices da produção industrial nos principais países caíram na mesma proporção (50%). E disso resultou um número enorme de desempregados: 12 a 15 milhões nos EUA, 6 milhões na Alemanha, 3 milhões na Grã-Bretanha; na Tchecoslováquia havia quase um milhão de desempregados numa população de 13 milhões de habitantes. A situação foi pior, embora na mensurável em cifras tão precisas, nos países menos conhecidos que viviam da exportação de matérias-primas, agora invendáveis.”
  • Houve um aumento da concentração da riqueza: “No fim do processo, oito grupos financeiros detinham 30% da renda nacional: a banca Morgan (que controlava General Electric, Pullman, US Steel, Continental Oil, ATT, etc.), Rockefeller (US$ 6,6 bilhões em ativos), Kuhn e Leeb (10,8 bilhões), Mellon (3,3 bilhões), Dupont de Nemours (2,6 bilhões). Constituíram-se também redes de acordos internacionais, espacialmente com empresas alemãs: Dupont de Nemours e IG Farben, General Electric com Siemens e Krupp, General Motors e Opel.” (Osvaldo Coggiola, “A crise de 1929 e a grande depressão da década de 30”)

Ainda não conhecemos plenamente a actual crise porque ainda a estamos a viver. Não a conhecemos tão bem quanto a crise de 1929/33 porque dessa já exploramos todas as consequências, já incidimos o crivo da racionalidade e o bisturi da análise sociológica e económica ao longo de décadas, mas é possível traçarmos em linhas gerais as grandes semelhanças e diferenças. Elas no ajudarão a compreender algumas vertentes que nos permitirão concluir sobre as ligações entre a actual crise de sobreprodução e a que então se viveu.

 

12. Entre as semelhanças salientemos as seguintes:

(A) Ambas são partes integrantes do ciclo de negócios, são crises de sobreprodução que se manifestam sob a forma de subconsumo. Dentro desta tipificação podemos dizer que são grandes crises, crises de grande intensidade de manifestação, com impactos sociais susceptíveis de gerar as mais profundas rupturas sociais. São crises de amplitude mundial que se revelam com grande sincronismo entre os países até então dominantes.

(B) Ambas se desencadeiam numa fase em que o capitalismo domina à escala mundial, em que as relações económicas e sociais são de tal forma intensas e frequentes que podemos falar num capitalismo mundial, o capitalismo já dominado por grandes empresas internacionais, as chamadas multinacionais. A exploração colonial de então expressa-se hoje sob a forma “neocolonial” (apesar das diferenças entre as duas situações as semelhanças são mais fortes) ou, por outras palavras, utilizando uma terminologia consagrada, estamos, então como hoje, na fase imperialista do capitalismo.

(C) Grande parte das formas de manifestação da crise é semelhante: diminuição do investimento privado, inversão do crescimento do produto nacional, desemprego em grande percentagem, falências, instabilidade bolsistas e violentas quedas de cotação. Enfim uma panóplia de situações a que já fizemos alusão.

Simultaneamente apresentam grandes diferenças:

(1) Os mercados financeiros não criam valor, transferem valor. A criação deste encontra-se, grosso modo nas actividades agrícolas e industriais. Os mercados financeiros podem ser importantes para as actividades produtivas mas serão tanto menos quanto o capital fictício assume uma importante parcela das actividades daqueles mercados. Quando da crise de 1929/33 a Inglaterra e os Estados Unidos da América, em plena ascensão mundial eram as economias mais poderosas tanto em termos produtivos como financeiros (em 1926/9 os EUA era responsável por 42,2% da produção mundial de produtos industrializados e o primeiro produtor mundial de carvão, electricidade e petróleo ao mesmo tempo que a bolsa de Nova Iorque assumia cada vez mais a hegemonia financeira mundial). Na actual crise os EUA dominam os mercados financeiros, continuam a ter uma importante base industrial mas há uma forte deslocação dessas actividades para outras economias, como a China. Há um hiato político-territorial entre o centro das actividades financeiras e os centros das actividades criadoras de valor. Este hiato tende a condicionar as possibilidades de recuperação da crise e tenderá a associar a saída da crise a uma reestruturação do poder económico mundial.

(2) Em parte pelas razões invocadas no ponto anterior, em parte por uma generalização da ideologia neoliberal, em parte, ainda, pelas novas formas adoptadas pelos EUA para manter o seu poder internacional (assente no capital financeiro e na capacidade militar) a economia mundial, muito particularmente as economias americana e europeia, dos últimos trinta anos tem assentado numa expansão exponencial dos mercados financeiros (monetário, de capitais, cambial; formais e informais), dos contratos a prazo (futuros, opções, swaps, warrants, certificados, produtos estruturados, Hedge Funds e tudo que a imaginação e os interesses do capital fictício o exijam), dos bancos, instituições financeiras e fundos de pensões. Uma financiarização não só desligada do processo produtivo como, em grande medida, contra ele. O capital especulativo, a quantidade de recursos absorvidos pelas transacções financeiras, o predomínio avassalador do curto prazo na lógica e dinâmica económicas foram factores que colocaram os mercados financeiros em conflito com as actividades produtivas. Acrescente-se que tudo isto associado à ideia da eternização desse processo conduziu a uma abundante criação legal favorável à redução das reservas bancárias (o que simultaneamente aumentava as suas capacidades de crédito) e à desregulação.

Por outras palavras, esta financiarização da economia apontava para a possibilidade de uma crise económica de maiores proporções e menores possibilidades de recuperação que na crise anterior. Esta tendência ainda foi reforçada pela política económica desencadeada quando dos primeiros sinais da crise: apoiar os bancos, alimentar os mercados financeiros, facilitar a vida aos principais agentes causadores da crise.

(3) O crescimento avassalador das actividades financeiras aqui referido foi sistemicamente acompanhado por um aumento da economia não-registada, frequentemente designada por economia paralela. Aumentam as actividades que visam a fuga aos compromissos fiscais (grandemente com o apoio dos próprios Estados que fomentaram a concorrência fiscal, a livre circulação do capital, a deslocalização industrial, as praças financeiras offshore), a economia ilegal (da escravatura ao tráfico de droga, do armamento ao lixo tóxico, das espécies em extinção aos órgãos humanos, etc.) e ainda a economia informal. A fraude entrelaça-se com esta tendência de aumento da economia paralela, a corrupção generaliza-se a assume formas mais sofisticadas, como a promiscuidade entre o económico e o político, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.). As máfias e o crime económico internacional organizado estão presentes por todo o lado. Estas são situações totalmente novas em relação à crise de 1929/33.

Por definição o aumento muito significativo da economia paralela reduz a eficácia das políticas económicas, reduz as possibilidades dos Estados desencadearem políticas económicas cíclicas, anti-crise e de recuperação, de promover um desenvolvimento económico assente na criação de valor.

(4) Há contudo uma diferença entre as duas crises que joga a favor da situação actual. Os Estados têm um passado de intervenção que lhes confere um maior peso na economia, apesar das teses liberais, antes, e neoliberais, depois. A integração económica, o maior entrelaçamento da economia e os actuais meios tecnológicos permitem conjugação de esforços à escala mundial e maior rapidez de actuação.

Mesmo nas semelhanças existem diferenças que não são nada despiciendas. Em ambas as situações há um domínio mundial do capitalismo. Contudo a crise de 1929/33 acontece com a experiência da Revolução Russa de 1917 ainda bem viva na memória de todos, num quadro social internacional de construção de um sistema social alternativo. A actual crise verifica-se após de um quarto de século de derrocada do conjunto de países constitutivos do “bloco soviético”, de convencimento de que a China optou definitivamente pelo capitalismo. Por outras palavras então o capitalismo estava ameaçado enquanto agora é o grande vencedor à escala mundial.

 

13. Perante a situação de crise, animados pelos apoios concedidos pelos Estados e pelas grandes quantidades de capital-dinheiro fora do controlo do Estado (offshores, economia paralela, branqueamento de capitais) o capital financeiros redescobriu novas formas de se reproduzir, de continuar a usufruir de lucros associados à especulação. Os mercados de futuros e as multinacionais permitiram alastrar a especulação a bens essenciais ao quotidiano das sociedades e das pessoas. Afectou os preços internacionais do petróleo e dos bens alimentares.

Os preços de muitos bens deixaram de ser o “ponto de encontro da oferta e da procura” e passaram a ser essencialmente o resultado do jogo monopolista através da intermediação dos mercados de futuros.

Isso já era muito claro quando dos primeiros aumentos brutais do preço do petróleo. Afirmava então (« O Financeiro contra o económico ». Shift #1, Maio 2008):

“Se as crises são períodos típicos de opção por bens que possam funcionar como reservas de valor, o sistemático aumento do preço do petróleo e os aumentos de alguns outros bens minerais e agrícolas, revelam uma situação nova. Os preços no consumidor final não são o resultado dos custos de produção e da oferta e da procura, mas da especulação:

«O movimento ascendente mais recente ocorreu em paralelo com uma queda pronunciada do valor do dólar americano e, consequentemente, com uma deslocação de muitos investidores para futuros contratos de crude. Trata-se de uma substituição básica dos activos em alta pelos que se encontram em declínio. Esta dinâmica influenciou significativamente o preço do petróleo no curto prazo e fez também aumentar os preços de outras mercadorias. (...) A OPEC aprecia a forma como os mercados financeiros funcionam, mas é importante ter atenção aos impactos sobre o mercado do petróleo deste género de especulação, na medida em que pode criar um clima de nervosismo e incerteza.» (OPEC, «Stability and volatility?», OPEC Bulletin 3-4/08)

O capital fictício continua a promover formas de auto-sustentação. Consegue transferir os impactos da especulação para o preço dos bens de consumos, canalizando rendimentos dos consumidores para os lucros de empresas e especuladores.”

Continua a ser assim hoje, como se relata em “Petrolíferas aproveitam a desgraça alheia”, publicado em Maio no Courrier:

  • “o essencial, o custo do barril das empresas reflecte os custos anteriores de perfuração e/ou de compra do crude, que quase sempre têm pouco ou nada a ver com o preço actual do crude”
  • “os verdadeiros – e talvez únicos – ganhadores são os especuladores financeiros, nos mercados de futuros, e as grandes empresas petrolíferas, que tiram partido do pânico generalizado para impor um aumento dos preços muito superior ao dos seus custos”.

 

14. A actual crise do euro e da União Europeia (é isso que está em causa e não os problemas financeiros grego, irlandês, português, espanhol, italiano, belga, etc., não as dificuldades de liquidez da grande maioria dos bancos, não o abrandamento do produto das economias dominantes como a alemã) é a conjugação de dois factores: (a) a expansão da especulação financeira às dívidas dos Estados e aos mercados cambiais; (b) uma série de erros na criação do euro.

Porque já anteriormente falámos do expansionismo do capital fictício e especulativo recordemos alguns aspectos da segunda vertente. Alertando para outros textos já depositados neste espaço, recorremos a mais um artigo do Courrier (“Euro: salve-se quem puder”) publicado em Junho:

  • “A crise da dívida na Europa pôs a nu todas as mentiras, todos os logros, vazios jurídicos, fissuras políticas e lacunas económicas que acompanharam a criação da moeda única. Uma das razões pelas quais os europeus ainda não consolidaram o euro é a sua incapacidade de avaliar a magnitude da má-fé que esteve presente na criação da moeda única”.
  • “a Zona Euro foi sempre vulnerável a uma crise financeira. Mas, levando a negação ao extremo, a Europa nunca criou um mecanismo de resolução de crises. (...) Foram as decisões políticas tomadas pelos dirigentes europeus que acabaram por pôr em perigo a solvência de alguns países. O erro mais grave cometido durante o processo de procura de solução para a crise foi a decisão tomada pelos líderes da Zona Euro, em outubro de 2008, após a falência do banco americano Lehman Brothers, de adoptar uma abordagem do tipo (...) cada um por si (...) em relação à crise do sistema bancário.”
  • “a Europa está atolada num problema clássico da ação colectiva: a defesa dos interesses nacionais impede uma solução comum”.

 

15. É neste contexto internacional e neste entendimento das crises e da crise de sobreprodução actual que podemos entender a “crise das dívidas soberanas”.

Contudo fica uma dúvida.

A maneira como a “crise do euro” tem sido “comandada pelos mercados” é de um rigor cirúrgico no aproveitamento dos elos mais fracos, do desnorteio das instituições, da articulação entre as situações europeias e internacional. A conjugação de esforços entre os “donos do mundo” (“mercados”, banca, ratings, etc.) também tem sido de um rigor militar.

Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica?

Os “mercados” têm uma intelligentia?