Os ratos e os gatos
1. Têm andado a circular na Internet um pequeno vídeo que, numa primeira observação, parece uma brincadeira ou um entretenimento infantil:
Será mesmo uma brincadeira?
2. Os sociólogos há muito criaram o conceito de “consciência possível”.
O que significa isso?
Parece que todos nós vivemos na mesma sociedade, e passamos pelas mesmas experiências. O peso actual dos meios de comunicação, e sobretudo da televisão, convivendo connosco todos os dias, parece reforçar esta ideia de homogeneidade. Contudo essa “igualdade” é aparente. Cada um de nós é moldado pela sua história de vida. Esta, desde o nascimento, vai incutindo comportamentos, referenciais éticos e estéticos, valores de leitura da realidade envolvente, hierarquização sensorial e formas de actividade perceptiva. A fase da escolarização tem um particular impacto sobre a descrição e interpretação dos fenómenos com que todos nós, e cada um, nos defrontamos. Na actividade perceptiva os fluxos eléctricos do cérebro para os sentidos são prioritários em relação ao fluxo inverso. A realidade é complexa, a sua percepção exige abstracção (nunca lemos o concerto) e aquela, parte de um sistemático movimento entre o concreto e o abstracto, engloba a utilização de filtros na retenção da realidade. Como diriam alguns filósofos, mesmo aceitando o realismo, a realidade-para-si, que constitui a nossa leitura da realidade, é uma parte, filtrada e “deformada”, da realidade-em-si.
Essa realidade-para-si continua a ser construída na idiossincrasia individual e dos grupos sociais e instituições em que cada um se insere, ao longo de toda a vida, da actividade profissional. Não se trata apenas de dar atenção a uns fenómenos e subestimar ou esquecer rapidamente outros. Não se trata apenas de quotidianamente lidar com determinados aspectos da realidade (ex. organização empresarial, desempenho de uma determinada tarefa) e nem saber que existem outros (ex. garantir os alimentos sem remuneração, desemprego). Não se trata apenas de escolher a informação a que quer e pode ter acesso (de entre os triliões de terabytes diariamente produzidos). Não se trata apenas da maior ou menor assimilação de algum tipo de conhecimento científico (ex. cuidados médicos com alimentação, jurisprudência) e ignorância total sobre outros (ex. física quântica, macroeconomia). Não se trata apenas de haver uma filosofia espontânea assumida por todos, que formata as opções de partida e as ideologias. Trata-se das próprias percepção e conceptualização do tempo e do espaço, da lógica utilizada (bivalente, trivalente ou multivalente? Consistente ou paraconsistente?).
Incluída nessa experiência de vida está o conjunto de conhecimento tácitos que lhe são transmitidos, os saberes transmitidos de geração em geração.
E em todas estas considerações estamos admitir, o que é uma simplificação abusiva, que todos partilham a mesma cultura.
Os factos anteriormente referidos e muitos outros, tantos quanto a infinidade do concreto em que nos inserimos quotidianamente moldam os limites da consciência de cada grupo social, de cada indivíduo. A consciência possível é o máximo que cada um de nós consegue abarcar em resultado das relações sociais que somos. A consciência real de cada um, resultante também das suas características biológicas e psíquicas individuais, situa-se dentro da consciência possível.
Por isso é tão difícil conhecermos o que não sabemos, estar abertos aos outros, econhecermos a nossa ignorância como primeiro momento de um processo de aprendizagem.
3. Passar dos conceitos de consciência real e consciência possível para o conceito de consciência de classe exigiria reflexões e análises que ultrapassam a natureza deste apontamento. Contudo, é de reter o que nos diz Sedas Nunes em Questões Preliminares sobre as Ciências Sociais:
“Contra a «evidência» de senso-comum que faz contrastar a «largueza de vistas» dos membros das classes «elevadas» (e «cultas ») com a «estreiteza de visão» dos membros das classes «inferiores » (e «incultas»), parece necessário admitir que, sem embargo de a «informação» dos primeiros ser seguramente muito mais densa, isto é: muito mais abundante em «elementos cognitivos», nem por isso a amplitude do respectivo «horizonte» tem de se considerar maior.”
4. Voltemos ao nosso vídeo. Coloquemos uma questão, absolutizando o global e subestimando as diferenças entre certos partidos: a chamada “classe política” é da mesma “raça conceptual” que a maioria dos cidadãos, a grande parte da chamada sociedade civil, a maioria dos votantes?