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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Offshores da falta de liberdade

sociodialetica, 23.06.11

1. Estamos numa época de valorização dos produtos nacionais. Muito bem. Sempre fui adepto dessa opção. Somos cidadãos do mundo, porque somos portugueses. Valorizemos esse ponto de partida se queremos que os nossos filhos e netos continuem a ter razão para continuar a habitar este território.

Houve um período em que o “desenvolvimento” passava por substituir importações. Passou-se a outro em que “desenvolvimento” era substituir exportações. Da sobrevalorização do “nós” passou-se à paixão pelo “outro”; do encerramento altista ao mundo passou-se ao altruísmo para com a globalização e os “senhores do mundo”. Talvez o velho filósofo nos recordasse que “no meio é que está a virtude”, mas o problema é de correlação de forças mundial e de quem ganha e quem perde com cada uma destas opções políticas, que têm sempre suporte num “modelo económico”. Modelo construído, por vezes, com alguma argamassa, outras vezes com castelos de faz de conta.

 

2. Mania de lucubrações. O que pretendo dizer é que valorizo a produção nacional (mesmo com capital estrangeiro), mas não valorizo tudo o que é nosso. Não apadrinho nem defendo o “Centro Internacional de Negócios da Madeira”, o “nosso” offshore caseiro.

Muitas são as razões que me impedem de ter uma paixoneta por tal produto nacional. Vão desde ele pertencer à irmandade de Ali Babá e os quarenta ladrões – embora numa época em que a crise obrigava a falar dos malefícios das praças financeiras internacionais o então ministro Teixeira dos Santos nos tivesse lembrado que o Offshore da Madeira era um caso à parte, diferente – às características geo-socio-políticas do território em que se insere. Mas deixemos essas considerações gerais para nos centrarmos em três factos.

 

Comecemos pelas informações avulsas. Estas não são animadoras: grandes empresas exportadoras com lucros fabulosos que pagam muito menos imposto que pequenas empresas instaladas no tradicional território nacional; as suspeitas do Ministério Público de fraude fiscal e branqueamento de capitais; a sua utilização pelos bancos “portugueses” através de empresas participadas. Sobre estas histórias reproduzamos um extracto do livro Revelações, sobre o qual já fizemos uma nota de leitura, para contar uma história completa:

A história começa em Novembro de 1985 quando a governo da Nigéria adjudica a exploração de gás natural a um grupo de três petrolíferas constituído pela Royal Dutch Shell, a francesa Elf e a italiana Agip que se comprometem a explorar uma unidade de gás natural liquefeito em Bonny Island, uma ilha no delta do rio Níger. Segundo o jornal gaulês, a obra avaliada em 6 mil milhões de dólares envolve um complexo esquema de subornos a altos responsáveis nigerianos que, em contrapartida, garantem a assinatura do contrato com o consórcio internacional TSKJ-Serviços de Engenharia Lda., formado por quatro firmas de engenharia: a francesa Technip, a italiana Snamprogetti, a britânica M.W. Kellogg Ltd (uma subsidiaria da KBR controlada pela gigante americana Halliburton, na época dirigida par Dick Cheney) e a nipónica Japan Gasoline Corp. Em 29 de Agosto de 1994, a joint-venturee é registada no Funchal e, em Novembro do mesmo ano, a Madeira vê nascer a LNG-Serviços e Gestão de Projectos Lda., uma sociedade que adopta as iniciais da unidade de gás de Bonny Island, a Liquefied Natural Gas. De acordo com a investigação jornalística do diário francês Le Figaro, a madeirense LNG é uma empresa-fantasma constituída com o objectivo de canalizar fundos para a Tri-Star Investment Limited sediada em Gibraltar, que por sua vez assegura o pagamento de subornos através de contas bancárias secretas no Mónaco e na Suíça. Após um longo processo de investigações, as empresas norte-americanas Halliburton e Kellogg Brown & Root LLC (KBR) aceitam pagar 579 milhões de dólares, depois de se terem declarado culpadas de práticas de corrupção. Um comunicado do Departamento de Justiça dos EUA refere que "durante 10 anos, as sociedades pagaram luvas a responsáveis do governo nigeriano, a fim de obter contratos de construção e de engenharia".

 

Continuemos. Um estudo recentes de alunos finalistas de uma licenciatura em Economia mostra que os impactos do Centro Internacional de Negócios da Maneira traz mais desvantagens para o desenvolvimento regional do arquipélago que vantagens. Desvantagens que também se expandem para o conjunto do território português. Recordemos uma passagem.

podemos realmente concluir que a despesa [isto é, perda] fiscal considerada pelo Estado com as empresas sediadas na Zona Franca da Madeira são de facto assinaláveis, ultrapassando os mil milhões de euros [ano], na sua grande maioria provocadas pelas perdas de IRC.

 

Terminemos com uma pérola de atentado à liberdade.

Um estudioso destas problemáticas resolveu escrever um livro sobre tão internacional e mediático Centro de Negócios. Investiu, com grande seriedade, largos meses de investigação. Analisou com uma editora a sua publicação, o que foi aceite. Acordou-se num determinado prazo de produção. Começou-se a fazer a composição do livro. A meio do trabalho, conhecedores do texto da obra, mexeram-se influências, tomaram-se decisões ao mais alto nível e decidiram recusar a edição do livro e destruir o trabalho de composição já feito. Leia-se que isto se passa hoje, trinta e sete anos depois do 25 de Abril de 1974.

 

3. Produtos nacionais destes nem para a reciclagem.

Apontamento sobre fraude e corrupção na Europa

sociodialetica, 18.05.11

Periodicamente as quatro grandes auditoras internacionais publicam o “ponto da situação” em relação a diversos comportamentos desviantes. Desta vez foi a Ernst & Young: 2011 European fraud survey.

Começamos por esclarecer que temos muitas dúvidas sobre as metodologias de amostragem e recolha da informação adoptadas por essas empresas e lastimamos que não sejam feitos estudos mais completos e sistemáticos para Portugal, o que seria possível, com custos razoavelmente ridículos em comparação com o preço dos seus serviços. Contudo esses estudos têm bases suficientemente firmes para permitirem fazer algumas leituras rigorosas, para tirar algumas fotografias à sociedade e às empresas.

Vejamos algumas das conclusões do estudo acima referido:

  • “um terço dos funcionários de grandes empresas na Europa revela estar disponível a oferecer dinheiro, presentes ou qualquer outro tipo de entretenimento para ganhar um negócio”;
  • “dois terços [dos funcionários] reconhecem que o suborno e a corrupção são comuns no seu país e 40% referem mesmo que esse problema se agravou nos últimos dois anos, com a recessão económica”;
  • “um quarto dos entrevistados não confia na ética empresarial da gestão [porque] a gestão não olha a meios para atingir os objectivos”.

Todas estas situações apontam para a falta de integridade das empresas, para a inexistência de uma política antifraude nas instituições (código de ética e sua prática como parte da cultura de empresa; formação dos quadros nesse sentido; introdução das praticas negociais correctas por parte da administração, etc.), para o baixo nível de formação nas áreas da integridade, corrupção e fraude, para a carência de quadros especializados na detecção e prevenção da fraude e corrupção.

As empresas europeias parece ainda não terem percebido que combater e prevenir a fraude é um bom negócio por três razões fundamentais:

  • Pode aumentar a sua margem de lucro. A segurança tem custos, mas funciona como um seguro, quando na Europa mais de 5% do seu volume de vendas é indevidamente desviado.
  • Demora-se muitos anos parar criar confiança numa marca, mas pode perder-se em segundos; os custos da recuperação, se possível, serão muito mais elevados
  • Neste inquérito “75% [dos funcionários] dizem mesmo que há vantagem comercial num comportamento ético. Os trabalhadores preferem certamente trabalhar para empresas com forte reputação ética, tendo 45% dos entrevistados mostrado indisponibilidade para integrar empresas envolvidas em casos de suborno ou corrupção”.

O estudo aponta como solução o aumento e a melhoria da regulação. Não temos nada contra, mas temos dúvida que tal funcione. Também existem outros caminhos:

  • Que cada empresa deixe de aplicar uma “política de avestruz” fingindo que não há fraude ou, se existe, é só nas outras empresas ou feita pelos clientes e fornecedores.
  • Que haja por iniciativa do Estado uma entidade séria e desburocratizada que apure anualmente a fraude (e corrupção) existente ou detectada, chamando a atenção de onde actuar e como actuar.
  • Que a “equipe de administradores” deixe de ser um círculo fechado onde o conflito de interesses, a proximidade e o compadrio pululam.

Claro que há mais medidas possíveis de curto e longo prazo, mas deixemos estas a saltitar no ar.

Corrupção

sociodialetica, 30.04.11

 

1. A corrupção choca-nos.

O seu aumento na última década, o despudor como emerge nos diversos campos da vida política, a impunidade com que se processa, ondas de fumo que não conduzem a nenhuma fogueira, reforça a nossa inquietude, apela à nossa intervenção cívica e ética, alerta-nos para a totalidade em que ela se insere.

É bom recordar, nunca é de mais, quão importante é percebermos que é possível combater a corrupção. Ao fazê-lo estamos a defender a democracia e o direito de todos os cidadãos a uma vida digna. A corrupção agrava as desigualdades sociais, gera subdesenvolvimento, deteriora a eficiência económica, desintegra o tecido social. A Transparência International e o seu ponto de contacto em Portugal, Transparência e Integridade Associação Cívica, são um contributo para este direito e dever de todos nós.

2. Contudo pretendemos, sobretudo, alertar que a corrupção é muitas vezes a face visível dum sistema integrado de ilegalidades, elas próprias constitutivas da organização social contemporânea, forjada nos últimos trinta anos, geradora da crise que vivemos.

Durante as recentes décadas houve uma financiarização da economia: um aumento da importância do crédito, das bolsas de títulos e das instituições financeiras, em relação à actividade produtiva, à criação de bens e serviços para os indivíduos e as empresas. Esse capital fictício, desligado da produção, não só entrou em conflito com esta como absorveu recursos que lhe eram indispensáveis.

Simultaneamente desenvolveu-se todo um conjunto de actividades que fogem ao registo oficial. Logo, não constam da contabilidade nacional dos países, é a Economia Não Registada. Dela fazem parte as actividades que deliberadamente fogem às obrigações fiscais e sociais (economia subterrânea), as actividades ilegais (pelo seu objecto, ex. produção e tráfico de droga, ou pela forma como se processam, ex., a captura e comercialização de muito do peixe que compramos) e ainda as chamadas actividades informais (designadas como actividades de sobrevivência mas, cada vez mais, integradas em redes internacionais).

Muitas das actividades da Economia Não Registada estão estreitamente associadas a Fraudes Financeiras: ex. subfacturação, empresas fantasma, manipulação contabilística, transferências para praças financeiras offshore. Obviamente associada à fraude fiscal. A corrupção lubrifica os canais por onde se processam muitas ilegalidades, muitas das transferências do não-registado para o registado. Ela própria gera economia não registada.

Esta duplicidade de circuitos gera, por sua vez, o branqueamento de capitais, um dos grandes flagelos actuais da humanidade, juridicamente associado ao financiamento do terrorismo.

3. É importante conhecermos de uma forma rigorosa o que é a corrupção, como se manifesta, como é percepcionada, qual a leitura que a sociedade faz dela, como se alastra e contamina os tecidos sociais, como degrada a ética e a coesão social, como é possível combate-la e, sobretudo preveni-la. Uma reflexão crítica que não se pode centrar apenas num ou dois aspectos da sociedade portuguesa (frequentemente é reduzido à questão da Justiça), mas que tem de ter em conta todos os vectores do nosso quotidiano.

 

SOUSA, Luís de, e João TRIÃES. 2008. A corrupção e os Portugueses atitudes, práticas e valores. [Lisboa]: Rui Costa Pinto Edições.

SOUSA, Luís de (Org.). 2009. Ética, Estado e Economia. Atitudes e Práticas dos Europeus. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

 

Estes dois livros são imprescindíveis para se conhecer de uma forma rigorosa, científica, a problemática da corrupção em Portugal.

A estes livros acrescentaria ainda a referência a um outro publicado já este ano:

 

 

 

SOUSA, Luís de e Domitília SOARES (Coord.). 2011. Em Memória de Saldanha Sanches. Transparência, Justiça Liberdade. Lisboa: Rui Costa Pinto Edições.