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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

E se Steve Bannon vestisse Colete Amarelo

JSC, 16.12.18

Em plenas manifestações dos coletes amarelos, em França, ouvi vários jornalistas e mesmo comentadores a questionarem se um dia também teríamos os coletes amarelos por aí.


Alguém os ouviu e aí está o anúncio da manifestação dos “coletes amarelos” em Portugal.
Se acredito que não é uma encomenda dos ditos jornalistas, tão pouco me parece que sejam iniciativas espontâneas, individuais, alguém que acordou, foi para o Facebook convocar uma manifestação e umas horas depois tinha milhares de aderentes. É pouco crível.


Uns tempos após o 25 de Abril um grupo de jovens resolveu protestar contra Espanha, dirigiram-se para a Embaixada Espanhola, umas horas depois a embaixada era invadida e incendiada. Anos mais tarde, com a libertação de documentação secreta, veio a saber-se que por ali andou a mão da CIA. O que parecia um movimento espontâneo, não era bem o que parecia ser.


E com os coletes amarelos? Em Janeiro deste ano um tal Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump, criou uma fundação, que designou de “The movement”, com sede em Bruxelas, para financiar e ajudar ao crescimento dos partidos populistas e de extrema-direita europeus.


The Movement”, segundo o própro Bannon, intervirá através de sondagens, investigação e prestação de serviços de aconselhamento sobre a mensagem a transmitir e o público-alvo para os partidos de extrema-direita. Servindo, ainda, de ligação entre estes partidos e o Freedom Caucus, grupo de congressistas com raízes no movimento de direita radical Tea Party.


Nos últimos meses o Sr Bannon encontrou-se com vários líderes da extrema direita europeia, a começar pelo líder do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP; Marine Le Pen da Frente Nacional Francesa; com os nacionalistas cristãos do Fidesz, partido do Presidente húngaro, Viktor Orbán e com os líderes da Alternativa para a Alemanha (AfD).


Recentemente, Bannon discursou na conferência anual do partido neofascista Irmãos de Itália. Sob os aplausos dos presentes, o Bannon garantiu que Trump, brexit e o resultado das eleições italianas estão interligados.


Qual o objectivo imediato que Steve Bannon definiu para “The Movement”? Nada mais nada menos do que a criação de um “supergrupo” dentro do parlamento Europeu que possa eleger até um terço dos membros do parlamento nas eleições europeias de 2019.


Como é que os “coletes amarelos” entram nesta estratégia?


Não sei, mas não me espantaria que daqui a alguns anos se soubesse que a mão de Steve Bannon identificou bem as fragilidades da cada país, as causas do potencial descontentamento popular, para, a partir daí, descodificar a mensagem a transmitir ao público-alvo, comandar protestos, fomentar a desordem pública, semear o medo, elementos essenciais para que o seu “The Movement” se implante no centro do poder europeu.

Crises (1)

sociodialetica, 28.03.12

A CRISE DE 1929/33 E A ACTUAL SÃO COMPARÁVEIS?


1. Só a história futura nos informará da validade da comparação entre a crise de 1929/33 e a de 2008 e que continua ainda hoje, 2012. Admitimos que existem semelhanças e diferenças importantes. Já fizemos referência a elas num trabalho anterior (»»») (»»») (»»»).

 

Apontávamos então como semelhanças:

  1. Ambas são partes integrantes do ciclo de negócios, são crises de sobreprodução que se manifestam sob a forma de subconsumo;
  2. Ambas se desencadeiam numa fase em que o capitalismo domina à escala mundial, embora no primeiro com a recente recordação da Revolução Russa;
  3. Grande parte das formas de manifestação da crise é semelhante.

Acrescente-se uma outra :

  1. Segundo alguns autores existem os ciclos longos da economia, com uma aproximação a uma periodicidade de meio século, contendo uma fase ascendente (de maior tendência ao crescimento) e uma descendente (de menor tendência ao crescimento). De acordo com estas teses as duas crises situar-se-iam numa fase descendente do grande ciclo de Kondratief

Apontávamos então como diferenças:

  1. Grande parte das actividades produtivas estão fora do território dos países que mais sofreram a crise (EUA e Europa);
  2. A crise actual está mais intensamente associada às bolsas de valores e ao capital fictício;
  3. Actualmente é muito maior a economia paralela;
  4. Hoje há um muito maior entrelaçamento das economias nacionais, pese embora o grande sincronismo do ciclo em 1929/33.

Acrescentemos duas outras muito significativas:

  1. Então vivíamos numa ditadura, que se tinha imposto recentemente, com um ambiente interno e externo que lhe era relativamente favorável. Hoje vivemos em democracia.
  2. Então o Estado Português tinha total poder de decisão política sobre as instituições económicas portuguesas, enquanto hoje essa soberania, nomeadamente económica, está em grande medida na União Europeia, fora do seu campo de decisão.

Esclareça-se, no entanto, que esta falta de poder de decisão nada tem a ver com o sistema político interno de Portugal, mas por agora haver uma integração regional (UE) e, sobretudo por esta ter adoptado (diga-se, também com o voto entusiasta de Portugal) uma configuração político-económica que privilegia o núcleo dos países mais desenvolvidos economicamente.

 

Da diferença apontada em (f) resulta uma outra diferença.

  1. Quando da crise de 1929/33 o sistema bancário já estava hierarquizado, havendo um banco central que apoiava os restantes bancos e que era o principal suporte financeiro dos Estados. Na actual crise o Banco Central Europeu não assume a função de recurso financeiro em última instância, e, antes pelo contrário, são os Estados que servem de recurso em última instância aos bancos operando nos respectivos países. Passou-se dum sistema bancário ao serviço do País para o País ao serviço dos bancos.

 

2. Sendo bom não esquecer todas estas semelhanças e diferenças há ainda dois aspectos que convém referir:

  1. Então como agora Portugal está numa fase de afastamento dos países mais ricos da Europa, numa divergência de dinâmica de crescimento económico. No período que antecede a crise o nível médio de rendimento por habitante em comparação com o dos países europeus mais desenvolvidos atingia o nível mais baixo desde o início do século XIX. Para o período mais recente o rendimento per capita português atingiu o valor mais elevado em relação à actual União Europeia em 1999, e desde então tem vindo a diminuir (ver Figura 1). Simultaneamente assiste-se a um agravamento da situação da nossa economia em termos de formação bruta de capital fixo, vulgo investimento, tendo quase sempre valores inferiores ao dos actuais países da UE desde 2000 (ver Figura 2).
  2. Em diversas crises anteriores se fizeram comparações com a crise de 1929/33, particularmente na de 1973/06, uma das maiores após a segunda grande guerra. Nessas comparações foi então dito qualquer coisa como “comparando a evolução dos indicadores económicos constatamos que a crise mais recente teve amplitude menor, mas isso deve-se essencialmente a que então não havia uma política económica.” Se esta afirmação é verdadeira então podemos dizer que esta crise é bastante pior que a de 1929/33.

 

Figura 1
Rendimento per capita
Percentagem de Portugal em relação ao que é hoje a União Europeia

 

Fonte: Banco Mundial

 

Figura 2
Taxa de variação do investimento
Diferença de Portugal em relação ao que é hoje a União Europeia

 

Fonte: Banco Mundial

 

O novo olimpo ou como o mercado só o é para alguns

sociodialetica, 04.02.12

1. O “mercado” ocupa um lugar mais importante que Deus. O desabafo tradicional “se Deus quiser” deu lugar a “se o mercado quiser”. Mantenho o meu emprego se o mercado quiser. Serei chamado para a administração de uma empresa se o mercado quiser. Teremos um futuro melhor se o mercado quiser. As desigualdades sociais aumentarão se o mercado quiser. O decrescimento económico será forte se o mercado quiser. A política de austeridade continuará se o mercado quiser. Os políticos no poder tendem a ser cretinos se o mercado quiser. Enfim, Deus continuará a existir se o mercado quiser.
É verdade, a existência de Deus depende dos mercados. Se fossem cumpridos os desígnios do mercado os trabalhadores por conta de outrem transformavam-se em robots, os ricos continuariam a sê-lo, os reformados, os velhos e os indigentes morreriam. Os reguladores aumentariam até ao absoluto a sua incompetência, o Estado passava a ser gerido por alguma empresa, dos ricos, claro está. Seria a santa consagração do equilíbrio económico. A realização plena dos mercados, porque deixaria de haver sociedade, e com ela morreria Deus.

 

2. Mas esse mercado tem que se lhe diga! É muito complicado. Está muito longe de ser homogéneo. Já sabíamos que tem “bolhas”, mas podemos admitir que tem outras impurezas, porque o mercado para uns não o é para outros.
É verdade. Se um supermercado vende um produto estragado que provoca a morte de muitos clientes o mercado castiga-o e terá que fechar as portas. Se uma empresa lança um produto que ninguém quer comprar, muda de ramo ou fecha as portas. Se um jornal diz que vivemos no melhor dos mundos e que Portugal é a porta de entrada para o paraíso... Bem, este é um mau exemplo: nesse caso era capaz de aumentar as vendas porque gostamos de ser enganados e viver na ilusão. Duvida? Está comprovado cientificamente pelas tendências de voto nas eleições.
Enfim, o querer dos mercados faz com que se seja expulso desse paraíso quando se tomam decisões erradas, quando se lançam produtos errados, quando se dão informações erradas. Saem do mercado e vão para o inferno da indigência. Mas esse mesmo mercado faz com que essas decisões erradas, esses produtos errados, essas informações erradas possam conduzir alguns ao olimpo do mercado, o espaço restrito dos bem-aventurados.
Não sabia? Mas olhe que eles, super-heróis, são bem visíveis e continuam a comportar-se com o estatuto que o olimpo lhes dá. Isso mesmo. Estamos a falar das empresas de rating.

 

3. Tem dificuldade em conhecer todas as suas próprias fraquezas e potencialidades, porque nem às paredes confessa? Não se preocupe porque é uma limitação de todos: é difícil conhecermo-nos a nós próprios. Um empresário tem dificuldade em gerir a sua empresa e em explorar todos os caminhos com que sonha. Se se pretender ter uma avaliação crítica de uma grande empresa serão precisos vários técnicos experimentados durante um largo período de tempo, para se ter um diagnóstico da situação, pontos fortes e fracos, sinais de alerta, hipóteses de evolução futura no mundo globalizado. Se se pretender conhecer os recursos de um país maior será o percurso, mais trabalho e tempo serão necessários, na melhor das hipóteses, na hipótese dos participantes desse estudo se entenderem.
É difícil fazer uma avaliação, mas só para quem não está no olimpo do mercado. Para estes bastam poucos minutos, poucas horas, no máximo do máximo, para avaliar uma empresa, para avaliar um país, para avaliar o mundo. A incompetência, o desaforo, a falta de vergonha rodopiam nos ares térreos, erguem-se ao olimpo da audiência submissa internacional e transformam-se em informação fidedigna sobre os mercados.
Qual o espanto? Não será o olimpo do mercado o melhor centro de observação do próprio mercado?

 

4. Não foi voz corrente e fundamentada – por acaso viram o filme Inside Job? – de que as empresas de rating foram das entidades responsáveis pela crise do subprime, que mergulhou o mundo na crise profunda que hoje ainda vivemos? Não é um facto histórico que empresas que foram à falência no início dessa crise financeira estavam muito bem cotadas pelas empresas de rating e que esse pequeno engano matou mais pessoas que a intoxicação do mercado? É verdade, por isso não foram afastadas do mercado. Comandam o mundo. Já colocaram o louro da vitória e cantam balelas no olimpo.
Compreende-se, elas fizeram o seu melhor. As pessoas que as ouviram é que não tiveram a capacidade de perceber que as informações delas estavam erradas. Entenda-se, elas são a Standart & Poor's, a Moody's e a Fitch, não é qualquer mexeruca em apartamento acanhado.

 

5. Ainda se lembra do que aprendeu sobre o mercado de concorrência perfeita? Nenhuma empresa ou consumidor tem capacidade de influenciar o mercado, o Estado não intervém, há liberdade de entrada e saída. Bonito. A versão económica da justiça divina. Por isso o mercado deusificou-se.
É exatamente o que se passa com as empresas de rating. Cada uma das três tem a sua metodologia própria de avaliação mas estão sempre de acordo. Elas avaliam as instituições mas são pagas para avaliarem, são pagas pelos próprios interessados na avaliação. Idiossincrasia estranha? Não, um negócio como qualquer outro. Tu dás e eu digo de ti. Tu dás muito e eu direi bem de ti. Tu pagas bem e eu direi bem de ti se ninguém me pagar ainda melhor para dizer mal de ti. A vida é assim.
É a era dos mercados financeiros. Os produtos transacionados podem surgir de qualquer mente engenhosa, de qualquer modelo matemático ou da mesquinha realidade de alguma empresa emissora. Os “derivados”, os “estruturados” e outros opacos processos de transferir responsabilidades e obter recursos, proliferam. As empresas de rating entram no jogo. Por um lado contribuem para a criação desses títulos, por outro classificam-nos e contribuem positiva ou negativa para a sua rentabilidade e a sua transação.
Diriam alguns, certamente mal intencionados, que as empresas de rating estão mergulhadas em inumeráveis conflitos de interesse. Seria como se num jogo de futebol o ponta de lança umas vezes marcasse na baliza do adversário, outras vezes na sua própria baliza. Não por autogolo acidental, mas porque para isso foi contratado pelas duas equipes. Comentários mal intencionados. O pecado do orgulho a impedir-nos reconhecer as nossas próprias limitações humanas. Todas as religiões têm os seus dogmas. No olimpo do mercado o conflito de interesses é a expressão máxima do saber divino, um dogma não revelado.

 

6. Coisas da vida. De hoje.
E amanhã?

 

7. No último artigo da trilogia sobre “Ciclo de negócios, crise e crise do euro” terminávamos do seguinte modo:


“Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica? Os “mercados” têm uma intelligentia?”


Ainda não sabemos a resposta. Não sabemos se as empresas de rating são o Zeus da época moderna, mas pelo menos são o Apolo.

Capitulação da União Europeia

sociodialetica, 03.09.11

Economia, Moral e Política de Vitor Bento, editado recentemente, não me animou.

O seu livro tem a vertente positiva de se preocupar com a moral nas actividades económicas, acontecimento raro nos economistas actuais. Tem análises feitas com rigor e seriedade. Contudo não me entusiasmou por nos trazer muito pouco de novo.

 

Entre esta simultânea sensação de agrado e desconforto, reproduzo, com a devida vénia, a quarta consequência esperada da crise actual:

“Quarto, ao nível geoestratégico, haverá, quase certamente, uma redistribuição de poder mundial, que no fundo mais não será do que o reconhecimento de um novo equilíbrio das "placas tectónicas" da economia mundial, cujo movimento das últimas décadas é, de certo modo, uma outra explicação para esta crise.

A China, por exemplo, se souber jogar a oportunidade que tem de se constituir num importante motor da retoma mundial, revalorizando a sua moeda e utilizando as vastas reservas acumuladas para dinamizar a procura − doméstica e mundial −, poderá obter como contrapartida uma importante posição nas instâncias, formais e informais, da governação mundial. E os países das outras grandes economias emergentes também não deixarão de aproveitar a oportunidade para reivindicar uma maior quota de participação nessas instâncias de governação, como se viu já com a Cimeira do G-20. Como alguém terá de ceder poder, o candidato mais natural será a União Europeia.

De qualquer forma, a redistribuição de poder efectivo já está a ocorrer, quando o capital acumulado por vários países com economias chamadas emergentes é chamado a preencher, na propriedade das empresas ocidentais, o vazio criado pela destruição da riqueza artificialmente aí criada.” (104/5 – itálico nosso)

 

É uma previsão realista que tem a ver com o presente e futuro de todos nós.

Também de si.

(3) Ciclo de Negócio, Crise e CRISE DO EURO

sociodialetica, 23.08.11

(Continuação de artigos anteriores com o mesmo título [1] [2])

 

11. As fases do ciclo e as crises manifestam-se de acordo com as leis que as regem, mas assumindo formas, intensidades, interligações, harmonias e conflitos diferentes conforme as especificidades de cada momento, conforme os comportamentos típicos e efectivos dos intervenientes na sociedade, desde o Estado às empresas. As leis são regularidades explicitadas através da observação imediata das irregularidades, enquanto aparências de fogachos do acaso.

A crise que se iniciou em 2008 e que continuamos a viver é frequentemente comparada com a dramaticamente famosa crise de 1929/33 sobre a qual é importante recordar algumas imagens:

  • Tudo parece ter começado na bolsa. “Os sintomas da crise já tinham aparecido no início de 1929 (leve queda da Bolsa de Nova York), a produção industrial americana já havia começado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando um período de leve recessão econômica, e em setembro aconteceu a queda da Bolsa de Londres. Em agosto, a taxa de juros foi levada de 5% para 6%, numa tentativa de reduzir o volume de crédito, mas já era tarde demais. A orgia de lucros, finalmente, estourou a 24 de outubro de 1929: as cotações do Stock Exchange de Nova York afundaram 50% em um só dia. Estes preços estabilizaram-se ao longo do final de semana, para caírem drasticamente novamente na quarta feira, 28 de outubro. Muitos acionistas entraram em pânico. Cerca de 16,4 milhões de ações subitamente foram postas à venda na quinta feira, 29 de outubro, a “Quinta-Feira Negra”. O excesso de ações à venda, e a falta de compradores, fizeram com que os preços destas ações caísse cerca de 80%. Até o final do mês, seguiram-se novas derrubadas de preços e uma onda de falências. Milhares de acionistas perderam, literalmente da noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham.”
  • A violência do não pagamento das dívidas alterou radicalmente o sistema monetário: “Em 1931-1932, a Inglaterra, Canadá, a Escandinávia e os EUA abandonaram o padrão-ouro; em 1936, somaram-se a eles Holanda e Bélgica, finalmente também a França”. (...) “A desvalorização se mostrava incapaz de sustar as fugas de capitais, inclusive as reforçava. A maioria dos países latino-americanos, cujas moedas foram depreciadas em 1929 e 1930, recorreu ao controle cambial em 1931 e 1932. Na Europa, vários países aliaram igualmente a desvalorização e o controle cambial.”
  • A actividade económica produtiva decresce violentamente: “Em 1932, a produção mundial tinha caído 33% em valor; o comércio mundial, 60%; o Birô Internacional do Trabalho contabilizava 30 milhões de desempregados (cálculo modesto). Os países mais atingidos pela crise, além dos Estados Unidos, foram a Alemanha, Austrália, França, Itália, o Reino Unido [onde a taxa de desemprego atingiu 20%],  e especialmente o Canadá. (...) O comércio mundial desabou: reduziu-se a um terço do seu valor entre 1929 e 1933. O desabamento se devia, em parte, à queda pela metade dos preços-ouro mundiais. Os índices da produção industrial nos principais países caíram na mesma proporção (50%). E disso resultou um número enorme de desempregados: 12 a 15 milhões nos EUA, 6 milhões na Alemanha, 3 milhões na Grã-Bretanha; na Tchecoslováquia havia quase um milhão de desempregados numa população de 13 milhões de habitantes. A situação foi pior, embora na mensurável em cifras tão precisas, nos países menos conhecidos que viviam da exportação de matérias-primas, agora invendáveis.”
  • Houve um aumento da concentração da riqueza: “No fim do processo, oito grupos financeiros detinham 30% da renda nacional: a banca Morgan (que controlava General Electric, Pullman, US Steel, Continental Oil, ATT, etc.), Rockefeller (US$ 6,6 bilhões em ativos), Kuhn e Leeb (10,8 bilhões), Mellon (3,3 bilhões), Dupont de Nemours (2,6 bilhões). Constituíram-se também redes de acordos internacionais, espacialmente com empresas alemãs: Dupont de Nemours e IG Farben, General Electric com Siemens e Krupp, General Motors e Opel.” (Osvaldo Coggiola, “A crise de 1929 e a grande depressão da década de 30”)

Ainda não conhecemos plenamente a actual crise porque ainda a estamos a viver. Não a conhecemos tão bem quanto a crise de 1929/33 porque dessa já exploramos todas as consequências, já incidimos o crivo da racionalidade e o bisturi da análise sociológica e económica ao longo de décadas, mas é possível traçarmos em linhas gerais as grandes semelhanças e diferenças. Elas no ajudarão a compreender algumas vertentes que nos permitirão concluir sobre as ligações entre a actual crise de sobreprodução e a que então se viveu.

 

12. Entre as semelhanças salientemos as seguintes:

(A) Ambas são partes integrantes do ciclo de negócios, são crises de sobreprodução que se manifestam sob a forma de subconsumo. Dentro desta tipificação podemos dizer que são grandes crises, crises de grande intensidade de manifestação, com impactos sociais susceptíveis de gerar as mais profundas rupturas sociais. São crises de amplitude mundial que se revelam com grande sincronismo entre os países até então dominantes.

(B) Ambas se desencadeiam numa fase em que o capitalismo domina à escala mundial, em que as relações económicas e sociais são de tal forma intensas e frequentes que podemos falar num capitalismo mundial, o capitalismo já dominado por grandes empresas internacionais, as chamadas multinacionais. A exploração colonial de então expressa-se hoje sob a forma “neocolonial” (apesar das diferenças entre as duas situações as semelhanças são mais fortes) ou, por outras palavras, utilizando uma terminologia consagrada, estamos, então como hoje, na fase imperialista do capitalismo.

(C) Grande parte das formas de manifestação da crise é semelhante: diminuição do investimento privado, inversão do crescimento do produto nacional, desemprego em grande percentagem, falências, instabilidade bolsistas e violentas quedas de cotação. Enfim uma panóplia de situações a que já fizemos alusão.

Simultaneamente apresentam grandes diferenças:

(1) Os mercados financeiros não criam valor, transferem valor. A criação deste encontra-se, grosso modo nas actividades agrícolas e industriais. Os mercados financeiros podem ser importantes para as actividades produtivas mas serão tanto menos quanto o capital fictício assume uma importante parcela das actividades daqueles mercados. Quando da crise de 1929/33 a Inglaterra e os Estados Unidos da América, em plena ascensão mundial eram as economias mais poderosas tanto em termos produtivos como financeiros (em 1926/9 os EUA era responsável por 42,2% da produção mundial de produtos industrializados e o primeiro produtor mundial de carvão, electricidade e petróleo ao mesmo tempo que a bolsa de Nova Iorque assumia cada vez mais a hegemonia financeira mundial). Na actual crise os EUA dominam os mercados financeiros, continuam a ter uma importante base industrial mas há uma forte deslocação dessas actividades para outras economias, como a China. Há um hiato político-territorial entre o centro das actividades financeiras e os centros das actividades criadoras de valor. Este hiato tende a condicionar as possibilidades de recuperação da crise e tenderá a associar a saída da crise a uma reestruturação do poder económico mundial.

(2) Em parte pelas razões invocadas no ponto anterior, em parte por uma generalização da ideologia neoliberal, em parte, ainda, pelas novas formas adoptadas pelos EUA para manter o seu poder internacional (assente no capital financeiro e na capacidade militar) a economia mundial, muito particularmente as economias americana e europeia, dos últimos trinta anos tem assentado numa expansão exponencial dos mercados financeiros (monetário, de capitais, cambial; formais e informais), dos contratos a prazo (futuros, opções, swaps, warrants, certificados, produtos estruturados, Hedge Funds e tudo que a imaginação e os interesses do capital fictício o exijam), dos bancos, instituições financeiras e fundos de pensões. Uma financiarização não só desligada do processo produtivo como, em grande medida, contra ele. O capital especulativo, a quantidade de recursos absorvidos pelas transacções financeiras, o predomínio avassalador do curto prazo na lógica e dinâmica económicas foram factores que colocaram os mercados financeiros em conflito com as actividades produtivas. Acrescente-se que tudo isto associado à ideia da eternização desse processo conduziu a uma abundante criação legal favorável à redução das reservas bancárias (o que simultaneamente aumentava as suas capacidades de crédito) e à desregulação.

Por outras palavras, esta financiarização da economia apontava para a possibilidade de uma crise económica de maiores proporções e menores possibilidades de recuperação que na crise anterior. Esta tendência ainda foi reforçada pela política económica desencadeada quando dos primeiros sinais da crise: apoiar os bancos, alimentar os mercados financeiros, facilitar a vida aos principais agentes causadores da crise.

(3) O crescimento avassalador das actividades financeiras aqui referido foi sistemicamente acompanhado por um aumento da economia não-registada, frequentemente designada por economia paralela. Aumentam as actividades que visam a fuga aos compromissos fiscais (grandemente com o apoio dos próprios Estados que fomentaram a concorrência fiscal, a livre circulação do capital, a deslocalização industrial, as praças financeiras offshore), a economia ilegal (da escravatura ao tráfico de droga, do armamento ao lixo tóxico, das espécies em extinção aos órgãos humanos, etc.) e ainda a economia informal. A fraude entrelaça-se com esta tendência de aumento da economia paralela, a corrupção generaliza-se a assume formas mais sofisticadas, como a promiscuidade entre o económico e o político, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.). As máfias e o crime económico internacional organizado estão presentes por todo o lado. Estas são situações totalmente novas em relação à crise de 1929/33.

Por definição o aumento muito significativo da economia paralela reduz a eficácia das políticas económicas, reduz as possibilidades dos Estados desencadearem políticas económicas cíclicas, anti-crise e de recuperação, de promover um desenvolvimento económico assente na criação de valor.

(4) Há contudo uma diferença entre as duas crises que joga a favor da situação actual. Os Estados têm um passado de intervenção que lhes confere um maior peso na economia, apesar das teses liberais, antes, e neoliberais, depois. A integração económica, o maior entrelaçamento da economia e os actuais meios tecnológicos permitem conjugação de esforços à escala mundial e maior rapidez de actuação.

Mesmo nas semelhanças existem diferenças que não são nada despiciendas. Em ambas as situações há um domínio mundial do capitalismo. Contudo a crise de 1929/33 acontece com a experiência da Revolução Russa de 1917 ainda bem viva na memória de todos, num quadro social internacional de construção de um sistema social alternativo. A actual crise verifica-se após de um quarto de século de derrocada do conjunto de países constitutivos do “bloco soviético”, de convencimento de que a China optou definitivamente pelo capitalismo. Por outras palavras então o capitalismo estava ameaçado enquanto agora é o grande vencedor à escala mundial.

 

13. Perante a situação de crise, animados pelos apoios concedidos pelos Estados e pelas grandes quantidades de capital-dinheiro fora do controlo do Estado (offshores, economia paralela, branqueamento de capitais) o capital financeiros redescobriu novas formas de se reproduzir, de continuar a usufruir de lucros associados à especulação. Os mercados de futuros e as multinacionais permitiram alastrar a especulação a bens essenciais ao quotidiano das sociedades e das pessoas. Afectou os preços internacionais do petróleo e dos bens alimentares.

Os preços de muitos bens deixaram de ser o “ponto de encontro da oferta e da procura” e passaram a ser essencialmente o resultado do jogo monopolista através da intermediação dos mercados de futuros.

Isso já era muito claro quando dos primeiros aumentos brutais do preço do petróleo. Afirmava então (« O Financeiro contra o económico ». Shift #1, Maio 2008):

“Se as crises são períodos típicos de opção por bens que possam funcionar como reservas de valor, o sistemático aumento do preço do petróleo e os aumentos de alguns outros bens minerais e agrícolas, revelam uma situação nova. Os preços no consumidor final não são o resultado dos custos de produção e da oferta e da procura, mas da especulação:

«O movimento ascendente mais recente ocorreu em paralelo com uma queda pronunciada do valor do dólar americano e, consequentemente, com uma deslocação de muitos investidores para futuros contratos de crude. Trata-se de uma substituição básica dos activos em alta pelos que se encontram em declínio. Esta dinâmica influenciou significativamente o preço do petróleo no curto prazo e fez também aumentar os preços de outras mercadorias. (...) A OPEC aprecia a forma como os mercados financeiros funcionam, mas é importante ter atenção aos impactos sobre o mercado do petróleo deste género de especulação, na medida em que pode criar um clima de nervosismo e incerteza.» (OPEC, «Stability and volatility?», OPEC Bulletin 3-4/08)

O capital fictício continua a promover formas de auto-sustentação. Consegue transferir os impactos da especulação para o preço dos bens de consumos, canalizando rendimentos dos consumidores para os lucros de empresas e especuladores.”

Continua a ser assim hoje, como se relata em “Petrolíferas aproveitam a desgraça alheia”, publicado em Maio no Courrier:

  • “o essencial, o custo do barril das empresas reflecte os custos anteriores de perfuração e/ou de compra do crude, que quase sempre têm pouco ou nada a ver com o preço actual do crude”
  • “os verdadeiros – e talvez únicos – ganhadores são os especuladores financeiros, nos mercados de futuros, e as grandes empresas petrolíferas, que tiram partido do pânico generalizado para impor um aumento dos preços muito superior ao dos seus custos”.

 

14. A actual crise do euro e da União Europeia (é isso que está em causa e não os problemas financeiros grego, irlandês, português, espanhol, italiano, belga, etc., não as dificuldades de liquidez da grande maioria dos bancos, não o abrandamento do produto das economias dominantes como a alemã) é a conjugação de dois factores: (a) a expansão da especulação financeira às dívidas dos Estados e aos mercados cambiais; (b) uma série de erros na criação do euro.

Porque já anteriormente falámos do expansionismo do capital fictício e especulativo recordemos alguns aspectos da segunda vertente. Alertando para outros textos já depositados neste espaço, recorremos a mais um artigo do Courrier (“Euro: salve-se quem puder”) publicado em Junho:

  • “A crise da dívida na Europa pôs a nu todas as mentiras, todos os logros, vazios jurídicos, fissuras políticas e lacunas económicas que acompanharam a criação da moeda única. Uma das razões pelas quais os europeus ainda não consolidaram o euro é a sua incapacidade de avaliar a magnitude da má-fé que esteve presente na criação da moeda única”.
  • “a Zona Euro foi sempre vulnerável a uma crise financeira. Mas, levando a negação ao extremo, a Europa nunca criou um mecanismo de resolução de crises. (...) Foram as decisões políticas tomadas pelos dirigentes europeus que acabaram por pôr em perigo a solvência de alguns países. O erro mais grave cometido durante o processo de procura de solução para a crise foi a decisão tomada pelos líderes da Zona Euro, em outubro de 2008, após a falência do banco americano Lehman Brothers, de adoptar uma abordagem do tipo (...) cada um por si (...) em relação à crise do sistema bancário.”
  • “a Europa está atolada num problema clássico da ação colectiva: a defesa dos interesses nacionais impede uma solução comum”.

 

15. É neste contexto internacional e neste entendimento das crises e da crise de sobreprodução actual que podemos entender a “crise das dívidas soberanas”.

Contudo fica uma dúvida.

A maneira como a “crise do euro” tem sido “comandada pelos mercados” é de um rigor cirúrgico no aproveitamento dos elos mais fracos, do desnorteio das instituições, da articulação entre as situações europeias e internacional. A conjugação de esforços entre os “donos do mundo” (“mercados”, banca, ratings, etc.) também tem sido de um rigor militar.

Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica?

Os “mercados” têm uma intelligentia?

(2) Ciclo de Negócio, CRISE e crise do euro

sociodialetica, 06.08.11

(Continuação de artigo anterior com o mesmo título »»»)

 

5. Numa linguagem muito simplista podemos dizer que ao longo do tempo as actividades económicas têm altos e baixos. Subidas e descida ao longo do século, ao longo da década, ao longo do ano, ao longo do mês, ao longo da semana, ao longo do dia. Em qualquer escala do tempo tem crescimentos e decrescimentos, evoluções mais rápidas e dinâmicas mais lentas. Os economistas passaram a chamar-lhes ciclos, distinguindo uns dos outros, ou pelo nome dos economistas que chamaram a atenção para a sua existência (ex. ciclos de Kondratief; ciclos de Juglar) ou pelo tempo decorrido desde um “ponto de partida” até um “ponto de chegada” que tem uma posição relativa semelhante ao ponto de partida (ex. ultralongo, longo, médio, curto, infracurto). Por vezes também os identificam pelo tipo de mercado em que se manifesta, havendo uns (ex. bolsa de valores) mais sensíveis que outros (ex. da construção civil).

Associada a esta oscilação também foi surgindo dois tipos de análises das temáticas económicas: conjuntural e estrutural. A primeira atende essencialmente aos movimentos de subidas e descidas, ao momento em que estamos na evolução cíclica; a segunda privilegia a tendência de evolução, a dinâmica de conjunto.

Numa primeira leitura podemos dizer que não é de espantar estas dinâmicas conjunturais, tantos são os intervenientes na actividade económica (ex: a comprarem ou a venderem, a pedirem ou a concederem crédito, a pouparem ou a aplicarem recursos), tantas são as intenções com que o fazem (ex: para adquirirem dinheiro ou bens, para fazerem aplicações durante uma vida ou segundos; para satisfazerem a sua ânsia de poder ou para ter lucros), tantas são os encontros e desencontros entre vontades, tão diversa é a informação com que promovem as suas acções (sendo habitual falar em simetria ou assimetria da informação), tanta é a diversidade institucional dos intervenientes (ex. famílias com muitos ou poucos recursos, empresas localizadas numa aldeia ou multinacionais, instituições públicas ou privadas, fábricas metalúrgicas ou gestores de fundos de pensões), tanta é a diversidade sejam quais forem os critérios considerados. Quando olhamos para esta diversidade podemos falar da anarquia da produção, da troca e da repartição de rendimentos.

Só por simplificação de raciocínio, por soberba humana de pretendermos impor à realidade os nossos pensamentos, poderíamos admitir que a economia, uma forma concentrada de falarmos na sociedade, evoluiria de forma simplista: a uma variação constante, a uma taxa de variação constante, ou algo semelhante.

A este propósito poderíamos percorrer a longa história da Filosofia sobre a relação entre o homem e a sociedade (ou a sociedade e o homem), sobre a natureza humana, sobre a liberdade. Excluiríamos Deus porque as ciências sociais (ciências e não meras lucubrações) assentam na laicização da sociedade, na hipótese de partida de que a dinâmica da sociedade é construída pela própria sociedade, de que há “leis naturais” que gerem os agregados humanos. Mas reencontramo-lo nos debates sociológicos do primado do homem sobre a sociedade (com o paradigmático Max Weber) ou da sociedade sobre o homem (com a referência a Durkeime). Os economistas discutiriam, o que não faremos agora, se são as conjunturas que determinam as estruturas ou se, pelo contrário, são as estruturas que determinam as conjunturas. Provavelmente discutiriam com a imprudência idealista de não destrinçarem a diversidade epistemológica (formas diferentes de pensar) da unidade ontológica (dinâmica global das relações sociais de produção e troca).

 

6. Contudo, mais importante é percebermos que, por detrás da anarquia, despontam probabilidades, regularidades, relações essenciais entre os actos, concatenações lógicas, o que podemos designar por leis científicas do funcionamento dos ciclos.

Leis que podem ser facilitadas ou contrariadas pela acção dos homens, pelo que se costuma designar por política económica, mas que, nesse contexto de conflito continuam a existir. (Para se aprofundar esta questão seria necessário distinguir entre “política económica” e “gestão económica”, entre “superação de contradições” e “desvio de contradições”). Leis, no entanto, que já se perfilavam a partir do momento em que utilizamos a palavra “ciclo” porque ela pressupõe a aceitação de uma sucessão de evoluções que se repetem no tempo, independentemente (ou através) da forma como isso acontece.

Porque este pequeno texto é o caminho para chegarmos a um melhor entendimento do que actualmente se passa com a moeda da União Europeia, com o euro, vamos concentrar a nossa atenção no ciclo de negócios, na fase da crise e em algumas das suas leis.

 

7. Para não entrarmos em grandes preciosismos técnicos, admita que vai a andar de barco e que há uma ondulação forte. Admita que está a subir uma onda, atinge o seu ponto mais alto. A essa situação segue-se uma descida, uma diminuição de nível, até atingir o ponto mais baixo. Chamemos-lhe a «fase um» da sua navegação. Atingido o nível mais baixo assim continuará durante algum tempo, mais ou menos dilatado conforme a frequência das ondas. Chamemos-lhe a «fase dois» da navegação. Finalmente começa novamente a subir até atingir um nível médio ao que tinha atingido na onda anterior. Chamemos-lhe «fase três». A subida continua até novamente atingir um cume, no qual nos mantemos algum tempo. É a «fase quatro».

Transpondo esta navegação para os ciclos podemos, grosso modo, dizer que a fase um corresponde à crise, a dois à depressão, a três à recuperação e, por fim, a quatro à expansão. Poderíamos adoptar outro tipo de classificações, mas esta parece-nos simples e compreensiva.

Claro que a dinâmica económica não é tão simples, como provavelmente não seria a própria navegação, porque uns ciclos sobrepõem-se a outros ciclos de tipo diferente, porque há uma tendência de evolução de longo prazo, porque existem diferenças de comportamento entre sectores de actividades e entre países, entre mercados locais e globais (apesar de desde 1968 estarmos numa fase de crescente sincronismo), entre empresas (a falência de umas pode ser a centralização e crescimento de outras, por exemplo). Mas a descrição aqui feita parece-nos suficiente para os nossos propósitos.

Porque a nossa cultura construiu a ideia de “progresso”, porque o funcionamento harmónico da actividade económica pressupõe que se venda o que foi produzido, que o procurado seja encontrado, que haja rendimentos para comprar os produtos, as fases consideradas “normais” são a recuperação e a expansão. A depressão é uma fase transitória para se atingir essa tão almejada “normalidade”. Por outras palavras, apenas a crise é considerada “anormal” e de facto assim a podemos considerar porque é o período de explosão dos conflitos, das desarticulações, das contradições. No entanto, tenhamos bem em conta, a crise é uma fase tão importante quanto as outras na reprodução do sistema capitalista. Mais, sendo a anarquia parte integrante da produção, troca e repartição do rendimento do capitalismo, a crise, ao resolver dramaticamente as tensões e os antagonismos que aquela propicia, tem uma função insubstituível na continuidade do sistema

Concentremos, pois a nossa atenção na crise.

 

8. As manifestações visíveis da crise são conhecidas: as mercadorias não são vendidas, as empresas têm carências de dinheiro para fazer face aos seus compromissos, muitas dívidas não são pagas, reduz-se o investimento privado (ou a sua taxa de crescimento), atenua-se a criação de emprego e aumenta o desemprego, intensificam-se as falências. As perspectivas de lucro diminuem, o pessimismo penetra em quase todos os interveniente no processo. A queda das cotações nas bolsas de valores é, frequentemente, o primeiro sinal estrondoso de se estar a viver uma fase de crise.

Concomitantemente agravam-se as desigualdades sociais, intensificam-se as tensões sociais. Estas manifestam-se de forma conflitual. Por um lado, as dificuldades existentes para grandes camadas populacionais, a violência ética das desigualdades, o desespero da criação do dia seguinte podem conduzir a situações de ruptura revolucionária. Por outro, a insegurança, a passividade que o desemprego gera numa estratégia de sobrevivência e a incerteza podem gerar uma submissão passiva. Num caso ou noutro o sentido das opções políticas pode ser muito diverso.

A crise é uma expressão do excesso. Faz todo o sentido dizer que “é a miséria na opulência”. Há excesso de mercadorias (mercadorias que estão inseridas num processo de valorização, que são capital, capital-mercadoria) em relação às possibilidades de venda. Há excesso de produção (capital produtivo) em relação às necessidades de produção para o mercado. Há excesso de dinheiro (capital-dinheiro) em relação às possibilidades de utilização rentável, sendo entesourado.

As crises do ciclo de negócios são crises de sobreprodução, crises de excesso de capital. A sua superação passa por uma destruição desse excesso de capital em relação à taxa de lucro esperada.

De um ponto de vista lógico tanto poderíamos falar de excesso de produção como de falta de consumo, sendo a sobreprodução a outra face do subconsumo. Contudo a relação hierarquizada entre produção, repartição do rendimento, troca e consumo, o primado da produção e a condução da dinâmica pelo capital (privado) fazem com que o essencial seja a sobreprodução, sendo a sua manifestação fenomenológica o subconsumo. A superação da crise, no quadro do sistema capitalista, passa inevitavelmente pela destruição espontânea, e dolorosa, de capital sob as suas diversas formas. A leitura pelo subconsumo, permite, no entanto, uma política económica de atenuação da crise, de impedimento dos seus efeitos mais nefastos para as populações.

 

9. Começámos o antigo anterior por chamar a atenção para o ciclo do capital: aplicar o dinheiro num processo produtivo, produzir mercadorias com um valor superior, vendê-las e retomar novo ciclo.

Na aproximação da crise, numa fase última de alta conjuntura, é frequente já começar-se a sentir as dificuldades de venda, as quais são inicialmente registadas pelo comércio (a retalho e por grosso) e só posteriormente pela indústria, pelas actividades produtivas. O tempo que decorre entre a aplicação do dinheiro (D) e o seu retorno (D’) amplia-se. O sector industrial, em sentido lato, começa a mostrar-se menos lucrativo, de mais difícil e incerta rentabilização. Entretanto os mercados de títulos financeiros continuam com elevados níveis de rentabilidade e de rápida rotação do capital (que pode aumentar pela ânsia de liquidez), com tendência para aumento da importância relativa do capital fictício.

O sucesso das aplicações financeiras e o início das dificuldades comerciais e industriais fazem com uma parte do capital-dinheiro se desvie destas actividades para aquelas aplicações, o que aumenta a “euforia” nos mercados financeiros. Frequentemente esta “euforia”, a aparência de que tudo “corre às mil maravilhas”, é já uma fase prévia da crise de sobreprodução, é uma primeira manifestação desta.

Porque se trata de uma expansão nos mercados financeiros que tem como contrapartida uma retracção do investimento nos sectores produtivos, porque já existem dificuldades de venda das mercadorias e há o perigo de rompimento do pagamento das dívidas, porque essa expansão financeira assenta mais sobre o capital fictício do que no financiamento às empresas, essa dinâmica financeira também se rompe.

Por estas razões uma das primeiras manifestações explícitas da crise são, frequentemente, as brutais quedas de cotação dos títulos nas bolsas, o “pânico” bolsista, o não pagamento das dívidas (o aumento do crédito mal parado), a falta de liquidez da banca e das instituições cuja rentabilização assentava nas aplicações bolsistas.

A aparência é a de que estamos perante uma crise financeira. Admite-se que as dificuldades sobrevenientes são uma sua consequência: que é a crise financeira que gera a crise no sector produtivo, no conjunto da economia. Contudo a sequência efectiva é outra: é o despontar da crise de sobreprodução que empola e retarda a crise financeira, é esta que revela em plenitude a crise.

 

10. Também a crise que actualmente vivemos parece ter sido gerada por uma crise financeira (localizada nos EUA, do subprime, tendo como momento nevrálgico a falência do Lehman Brothers), mas a crise actual, do capitalismo em fase de globalização, nem foi exportada pelos EUA (embora o que aí aconteceu tenha fortes impactos nos restantes acontecimentos), nem é o resultado de acontecimentos financeiros. É uma crise de sobreprodução tendencialmente mundial.

A sua dinâmica obedece às leis económicas das crises, particularmente evidentes quando estamos perante grandes crises. Contudo as formas que aquelas assumem dependem das características da dinâmica social em cada momento.

A crise actual enquadra-se nas características aqui traçadas, mas assume especificidades, essencialmente resultantes da hegemonia do neoliberalismo, das características da globalização e do tipo de “política económica” adoptada.

A sua análise permitirá ver de forma mais clara a situação actual, nomeadamente a crise do euro, assunto de que nos ocupará em próxima conversa.

(1) CICLO DE NEGÓCIO, crise e crise do euro

sociodialetica, 29.07.11

1. Falemos em empresa para designar o conjunto de actividades sociais que criam bens e serviços e, por essa forma, criam valor.

No ciclo de vida de uma empresa tem de haver, à partida, dinheiro (D). É com ele que os proprietários da empresa podem comprar máquinas e equipamento, matérias-primas e energia. É com esse dinheiro que as empresas contratam inicialmente os trabalhadores que, utilizando os equipamentos, vão criar mercadorias, isto é, os tais bens e serviços que vão ser adquiridos e utilizados por outros membros da sociedade (outras empresas e famílias, nacionais ou estrangeiras). Com o dinheiro compram-se mercadorias (M) que vão ser utilizadas num processo produtivo (...P...), seja ele qual for, para produzir outro tipo de mercadorias (M’). Vendidas estas, as empresas voltam a obter dinheiro, que lhes permite reiniciar um novo ciclo produtivo.

Sinteticamente

D – M ...P... M’ – D’

 

em que M’ são os bens e serviços produzidos, diferentes das máquinas, matérias-primas e força de trabalho inicialmente adquiridos (M). Diferentes nas suas características e no seu valor (D’ é maior que D), sendo a diferença o lucro.

 

2. Falemos agora da sociedade, da sociedade transformada pela Revolução Industrial, na qual continuamos a viver (dramaticamente redescoberta por alguns na presente crise) embora, obviamente, com um conjunto de especificidades (tecnológicas, informativas, éticas, ambientais; com outros espaços sociais de realização e outros tempos de realização). Historicamente o dinheiro (mais genericamente a moeda) é posterior à produção de bens e serviços, mesmo posterior a aquelas serem produzidas para outrem, serem mercadorias: (M – D).

É a produção que permite criar valor novo, rendimento. É este que permite aumentar a quantidade de bens e serviços durante um dado período, acumulando-se sob a forma de riqueza (individual e colectiva): ...P... é o ponto de partida da dinâmica social.

Por outras palavras, a dinâmica das empresas (e poderíamos dizer outro tanto das famílias) e da sociedade são diferentes, podendo funcionar em harmonia (complementaridade) ou conflito (oposição das respectivas dinâmicas).

 

3. As empresas precisam de dinheiro hoje para obterem maior quantidade de dinheiro amanhã. Se hoje obtiverem mais dinheiro amanhã também terão ainda mais. É individual e socialmente (aqui há harmonia) vantajoso antecipar ciclos de negócios. Para tal há que aumentar a importância do capital alheio (emprestado) em relação ao capital próprio (sendo também vantajoso aumentar este, sobretudo se não puser em causa a propriedade da empresa).

Estas funções foram preenchidas através de duas instituições.

Em primeiro lugar pelos bancos, eles próprios anteriores à Revolução Industrial, há muito especializados em conceder crédito e obter uma remuneração adicional por essa actividade. A sua função específica é transferir dinheiro de quem o tem disponível para quem necessita dele. A sua importância aumenta quando se vão apercebendo que não precisam de ter no cofre todo o dinheiro que foi neles depositado e passa a haver um sistema de compensação nos pagamentos entre os bancos.

Em segundo lugar pelas bolsas de valores, que surgiram mais tarde, inicialmente destinadas a compra e venda de acções (forma das empresas aumentarem o capital próprio) e obrigações (forma de obterem capital alheio). Durante muitos e muitos anos esta era a actividade principal das bolsas de valores: permitirem às empresas aumentar a actividade produtiva antecipando dinheiro. Quem emprestava comprava obrigações, e pretendia receber periodicamente um juro; quem participava com o seu dinheiro no capital da empresa comprava acções e pretendia obter uma parte dos seus lucros, receber dividendos.

É certo que sempre foi possível “jogar na bolsa”: comprar acções hoje para vender amanhã, fazer o mesmo com as obrigações. Se tudo lhes correr bem obtêm um rendimento adicional. Essas aplicações financeiras são, para ele, capital. Mas essas sucessivas compras e vendas nada têm a ver com o processo produtivo, porque o financiamento das empresas já foi anteriormente feito: do ponto de vista social esse “capital” não cria nova riqueza, é fictício. Utilizando a terminologia anterior referida, aqui há conflito entre o individual e o social.

As bolsas de valores permitem capital fictício, mas a sua importância foi, até os anos 80 do século passado, reduzida. Também os bancos permitem o crédito ao consumo, embora socialmente a sua função principal seja a o crédito à produção.

 

4. E tudo funciona bem enquanto os negócios vão bem, o que não acontece quando se aproxima uma crise, quando esta se manifesta.

Veremos oportunamente como é que tudo acontece e como os acontecimentos evoluíram desde meados do século XIX até aos dias de hoje.

Será matéria da próxima conversa.

Passos Coelho foi ao Casino

José Carlos Pereira, 07.07.11

Pedro Passos Coelho levou ontem a família ao Casino. Calma! Foram ao Casino de Lisboa, mas por motivos "culturais". Em cena estava a peça (ali entre a revista e o stand up comedy) "Vip Manicure - A Crise", com Ana Bola e Maria Rueff. Um espectáculo que revisita o humor que chegou a cansar os espectadores da SIC.

Depois de levar "um murro no estômago" nada melhor do que uma diversãozinha, não é?

Imaginam o que se diria se fosse o "outro" a ir dar umas valentes risadas no dia em que a agência de notação Moody's cortou o rating do nosso país para o nível de "lixo"?

Ele ou nós?

sociodialetica, 27.03.11

1. São conhecimentos antigos e frequentemente referidos: “Não se pode (duradoiramente) repartir o que não se produziu”; “Para garantir maior produção é fundamental o investimento (todo ele)”; “a moeda (equivalente geral) só existe porque há produção e troca de bens”.

Qualquer estudante de economia deve ter presente estes princípios básicos. Li-os pela primeira vez em Problemas Fundamentais de Economia, do saudoso Francisco Pereira de Moura, no início dos anos 60.

Bastaria ter estes aspectos em consideração para se saber que um projecto duradoiro de moeda única em diversos países, que abdicariam da sua moeda, logo de uma parte da sua soberania e da sua capacidade de regular a sociedade, passaria inevitavelmente por estratégias de aproximação produtiva entre regiões. Uma moeda única entre diversos países passaria por o que se costuma designar por “convergência real”.

Contudo, quando se começou a falar da criação da moeda única europeia os políticos, por ignorância, interesse ou soberba, afastaram a “convergência real” da agenda política. Foi substituída pela veleidade da “convergência nominal”: os países continuam com profundas desigualdades produtivas, competitivas, redistributivas, logo estratégicas, mas” acertariam o passo” em termos orçamentais, fiscais, de inflação.  Como se diria na gíria popular, constrói-se a casa a partir do telhado. Nem todos os países estariam nessa situação, porque a moeda única era feita à medida de alguns, mas estariam todos os que têm menores capacidades de produtividade e competitividade.

Produtividade e competitividade que podem melhorar com o voluntarismo, mas que essencialmente dependem da produção e de procedimentos formativos de longo prazo.

Teve-se a soberba de construir a moeda única de cima para baixo, sabendo desde sempre que a capacidade dos países para fazerem face, mesmo em conjunto, a eventuais especulações sobre as moedas seria pequena. Os especuladores internacionais eram mais poderosos. Sabia-se quando o projecto foi avançado, agravou-se quando foi concretizado, intoxicou-se com a actual crise.

 

2. Discutir hoje o euro deveria ter em conta tudo isto e reconhecer os erros cometidos. É preciso salvar o euro? Não tenho nada contra, antes pelo contrário. Mas a prioridade é sabermos como salvar os cidadãos dos países da moeda única, todos e cada um deles. Salvemos o euro só e apenas só se isso for compatível com salvarmos as populações e as nações.

Se tal é possível, só será concretizável com uma estratégia de longo prazo, obviamente atenta ao presente, mas não hipotecada a ele. Que os políticos, os domínios e as subordinações não gerem novas fugas em frente.

Não gerarão mesmo?!