diário Político 232
Paisagem desprotegida
d’Oliveira fecit, 6 de Maio
Há males que até podem vir por bem, Enfim, que podem ter alguma serventia. Ou seja poderão ser úteis se os poderes central, regional e local tiverem vergonha na cara o que pode ser demasiada exigência.
Agora, foi Odemira. Subitamente, pelos vistos, toda a gente descobriu que naquele enorme concelho alentejano há migrantes a viverem abaixo de quaisquer condições mínimas. Pior, há suspeita fortíssima de tráfico de pessoas, de mafias criminosas que negoceiam a vinda de pobres desgraçados para trabalhar nas estufas por dez mil euros!
Dez mil euros e, para qualquer português uma soma alta. Imagine-se quão alta será para os deslocados do Bangladesh, do Nepal, da Índia, da África sub-sahariana ou mesmo dos países do Leste europeu.
São as famílias e os amigos que se associam para poder enviar um migrante que, uma vez ma terra (alegadamente) prometida lhes irá pagando. Primeiro a dívida, depois a ajuda e finalmente se tudo correr bem até custeando oa vinda de outros para cá.
As “mafias” quase todas de lá conseguem até estender os seus tentáculos ao destino final, alugando casas que “bem divididas” são outro negócio da China, Assim uma casa com dois quartos e que custe 1000 euros poderá albergar uma boa dúzia de pobres criaturas que pagarão em média 130/150 euros. Convém clarificar que este negócio também é levado a cabo por habitantes locais que não são menos gananciosos.
Toda a gente conhece esta realidade desde que o negocio das estufas foi implementado em Odemira. Aliás, noutros pontos do Alentejo também atingidos pela agricultura intensiva, a mesma situação repete-se. A televisão mostrou uma reportagem no Baleizão de Catarina Eufémia que faz esta e os seus camaradas parecerem ricos e privilegiados face a este lado ainda mais sombrio dos trabalhadores agrícolas alentejanos. Cenas do mesmo teor repetem-se nos distritos de Setúbal e Santarém, provavelmente menos evidentes mas qualitativamente semelhantes.
Também convém dizer que nem todo o patronato local (em Odemira) esconde a situação ou tolera (e aproveita-se) do mercado negro de seres humanos. E que, de quando em quando, a câmara municipal foi advertindo o Governo e as autoridades, nomeadamente as ligadas ao sector agrícola e à segurança social ou à segurança tout court.
Todavia, de pouco serviram avisos, exposições, reclamações ou queixas. A burocracia (isto é o Estado) lá estava vigilante para , como é seu bom princípio, torpedear, empatar, adiar, assobiar para o lado. No caso de criação de habitação condigna, a coisa começou logo pelo facto de se estar numa “área protegida” da Costa Vicentina. Em bom português, a paisagem, alguma bicheza, o estado impoluto das praias tiveram a primazia sobre os seres vagamente humanos que por lá vagueiam, trabalhando duramente, aumentando a riqueza nacional, as exportações, os impostos municipais, movimentando o comércio local e tudo o resto. A conta deste magno problema em que a paisagem pesa mais do que o homem (este homem pobre, desqualificado, que não fala português, que faz o que já nenhum português quer fazer). Andam há três anos em conversa fiada. E mais andariam se não fora o covid que, deu forte e feio em Odemira devido, diz-se a um par de infecções começadas na Assembleia Municipal. )Pelos vistos os emigrantes tão desprovidos de tudo nem ao vírus terão tido direito! A miséria como anti-viral é mesmo algo de alucinante!
A solução definitivamente provisória como é habito nacional foi meter alguns (os com mais sorte, apesar de tudo) em contentores que, segundo uma conspícua dirigente socialista teriam até “ar condicionado” (acredite quem quiser que nanja eu.
A PJ e o SEF andam em profunda investigação há dois ou três anos. Percebe-se que a coisa seja profunda pois aquela gente vem praticamente dos antípodas.
As “máfias” tem pois alguns anos de bons lucros à sua frente, O mesmo sucede com os proprietários locais que alugaram casas ou algo que faz idêntico papel. Parece que começaram a aparecer negócios (mercearias, por exemplo) que benemeritamente importam e vendem aos “monhés” acepipes lá da terra deles. Os géneros podem ser indianos ou nepaleses mas os peeços esses são bem portugueses, versão Alentejo litoral. Uma negociata! Uma chatinagem de alto gabarito.
As excelentíssimas autoridades, incomodadas com esta descoberta do que estava à vista de todos prometem medidas. Uma delas é instalar os migrantes sãos num complexo turístico falido. Como esse complexo se continua por um bairro de segundas moradias pinocas, os proprietários destas que, coitados de nada sabiam ,nada viam, nada suspeitavam, os pobres inocentes, juram que tais medidas de mera e curta solidariedade “no pasarán!”
Hoje o “Público” traz uma reportagem sobre a comunidade indiana em Portugal, isto é em Lisboa. Os números oficiais dão conta de um crescimento gigantesco: eram, há poucos anos 5000, são hoje cinco vezes mais. Pelos vistos, trata-se de uma comunidade exemplar. Zero crimes, boa integração, boa convivência (hindus, muçulmanos e católicos, indianos paquistaneses e sikhs, para além dos indo-moçambicanos que, em vagas sucessivas foram chegando à antiga metrópole. A comunidade também tem um índice educacional bastante alto porquanto a esmagadora maioria dos jovens passa pela universidade.
De resto, o actual Governo tem três figuras de origem goesa que além do 1º Ministro integra os ministros das Finanças e Aliás, já o anterior governo tinha um Secretário de Estado (da Cultura) de origem goesa.
Porém, parece haver indicadores que demonstrariam a existência de uma diáspora indiana de quase cem mil membros ( quem são, onde estão ?) . É que, exceptuados os trabalhadores temporários e semi-temporários dos campos do sul (10/15 ou 20000?) não se descortina assim tanta gente.
Seja como for, esta comunidade tem-se integrado com relativa facilidade e êxito. O mesmo se poderia esperar destes outros, e menos felizes, novos habitantes que pelo seu trabalho bem merecem outro acolhimento e sobretudo a protecção que, até à data, tem miseravelmente falhado. E aqui ninguém poderá, doravante, desculpar-se: o abcesso rebentou, o escândalo está à vista e impõe medidas rápidas, fortes que nos permitam, a nós portugueses, deixar de nos envergonharmos.
Eu faço parte dos que se lembram das desastrosas condições de dezenas (ou centenas?) de milhares de emigrados portugueses que se amontoavam em zonas absolutamente degradadas na cintura imediata de Paris. Hoje nada ou quase nada recorda essa odisseia de sofrimento e esforço. A imensa maioria (aliás, os filhos e/ou os netos estão integrados na vida francesa, são franceses quase todos e começam a ver-se nomes portugueses nas candidaturas políticas. É um bom sinal. Assim se passe o mesmo com os que agora nos vem pedir trabalho, dignidade e esperança. Sejamos, por uma vez, dignos de algo que sempre alardeamos como virtude portuguesa: a absorção de outros que queiram partilhar os nossos valores.
a ilustração representa uma página dos Vedas