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A liberdade mata as ditaduras
d’Oliveira fecit em 31 de Agosto
A morte de Mikahil Gorbatchov levanta de novo uma interessante questão: o regime comunista é inexoravelmente diluído pela liberdade. Decompõe-se, desaparece, deixa um vazio perturbador.
Os pressupostos em que assentou o “poder dos sovietes” ( e é bom lembrar que estes duraram muito pouco tempo, pelo menos na sua primitiva e revolucionaria forma tendo sido substituídos por organismos com o mesmo nome mas sem a mesma e libertária substância) foram sol de pouca dura. Os bolcheviques (isto é a famosa maioria chefiadapor Leniin), depois da tomada violenta do poder, imediatamente subordinaram as direcções de todos os novos órgãos revolucionários aos diktats do PC(b) russo e organizaram todos os partidos “irmãos” segunda as rígidas regras da IIIª Internacional.
A revolução mundial não aconteceu, a teoria sagrada que mandava a revolução ocorrer num país avançado (Marx referia a Alemanha, a Inglaterra ou os Estados Unidos da América) com um proletariado industrial numeroso, bem organizado em sindicatos fortes e com um partido experiente em todas as frentes incluindo a parlamentar.
Nada disto ocorreu na Rússia e a revolução passou muito pelos milhões de soldados e marinheiros mobilizados e cansados de uma guerra que dizimava regimentos inteiros, aliás mal comandados. Foram os slogans do fim imediato da guerra e da terra quem a trabalhaque galvanizaram os incipientes ”proletariados” citadinos e camponeses. Aliás, só os primeiros poderiam vagamente apelidar-se de proletários. O resto, a imensa massa de camponeses chamados às armas não se concebia como um corpo organizado nem tinha uma ideia nacional global da pátria russa que defendiam. A Igreja e o trono eram, eventualmente, os únicos pilares em que acreditavam.
Em 1917, multidões imensas de soldados, fartos da guerra, esfomeados, revoltaram-se. Queriam regressar as suas terras, às suas famílias, aos seus pequenos troços de terra. E não queriam morrer nem ser carne para canhão.
A ideia de continuar a lutar por uma Rússia sem imperador não lhes suscitava qualquer entusiasmo.
Isso foi bem compreendido por Lenin, e a “revolução” de Outubro (feita aliás contra uma parte dos mais fieis bolcheviques) triunfou na rua. O poder esboroou-se no caos que, dia a dia, aumentava. Um punhado de tropas fieis aos bolcheviques (com os marinheiros de Kronstad em evidência) tomou o poder, destituiu todas as autoridades saídas da primeira revolução, desapossou os sindicatos que se opunham, eliminou a direcção dos sovietes e graças à disciplina dos seus primeiros núcleos venceu toda a espécie de adversários que também nunca se entenderam entre eles. Os enormes contingentes mobilizados no campo sabiam que lutavam contra os antigos opressores e isso lhes bastava. A inteligentsia citadina desprezava e odiava a anterior elite política, a multidão de aristocratas que cercavam o imperador e tinham entrado imprudentemente numa guerra para a qual não estavam preparados moral e militarmente.
Os recém criados partidos políticos burgueses ou evolucionários foram rapidamente aniquilados. Uns por terem tomado o partido da contra-revolução, outros por não aceitarem o bolchevismo, a disciplina pesada boldhevique e tudo o que posteriormente se chamou centralismo democrático.
Anarquistas e socialistas revolucionários foram impiedosamente perseguidos por Lenin que nunca foi meigo com adversários (e que viria a ser alvo e vítima de um atentado vindo dessa massa de radicais perseguidos).
O partido bolchevique que mais tarde se tornará PCUS temperou-se nessa luta incerta, venceu-a graças à disciplina interna, expurgou continuamente quaisquer dissidentes, não permitiu fracções nem mesmo vagas opiniões divergentes. Com a morte de Lenin e a ascensão de Stalin, a direcção do PCUS foi sendo metodicamente laminada. Durou anos (1924 1936) mas finalmente o partido que saiu do fim dos processos de Moscovo era algo de profundamente diferente do inicial partido leninista. Tirando Stalin e dois ou três sobreviventes, todos os restantes dirigentes comunistas pereceram por fuzilamento, desapareceram nas prisões e nos campos da Sibéria. Eles, as famílias, os amigos e seguidores ! um massacre de milhões. Se Lnin fora, apesar de tudo, um fore primum inter pares, Stalin acabou com o mito da direcção colectiva e governou sozinho. E isso tornou-se a marca dos novos partidos comunistas, incluindo todos os europeus (que de resto tiveram durante todo o tempo do Komintern uma direcção bicéfala, a publica e nacional e a dos enviados de Moscovo, revolucionários profissionais que dirigiam na sombra, vigiavam a ortodoxia e só obedeciam ao “centro)”
De resto, da revolução mundial, passara-se à teoria duvidosamente marxista da defesa do socialismo num só país e à defesa desse mesmo país, no caso a URSS. E esse estado de coisas não acabou com a morte de Stalin antes continuou praticamente intacto até às grandes convulsões no movimento comunista mundial .
A ditadura do proletariado foi na prática a ditadura do PCUS na URSS e a ditadura da URSS no bloco socialista.
Por cá a mesmíssima URSS era “o sol na terra” expressão atribuída a Cunhal mas repetida nos grandes momentos do PREC.
Fácil é de perceber que toda esta amálgama de ideias criadas ao longo de cinquenta anos isolava crescentemente os órgãos de poder soviéticos, criava uma nomenclatura aparelhística, educada na obediência absoluta ao dogma do centralismo democrático que mais não era do que as decisões dé cima enviadas para baixo, tudo no mesmo corpo de funcionários escolhidos não pela competência mas sim pela fidelidade ao ideário aprendido nas escolas de formação desde o Komsomol até às Universidades. Nmu universo destes, em que não há confronto de opiniões, liberdade crítica , o conformismo instala-se, expulsa os espíritos mais independentes, isola-os, priva-os de liberdade e de emprego caso não os envie para o arquipélago GULAG.
Nos anos 60 já a URSS é vermelha por fora e seca por dentro. A competição com os EUA só tem força no que toca ao armamento. A população soviética (e a dos países do Pacto de Varsóvia) vive mal, há dificuldades de abastecimento de todo o género de bens de consumo, a opinião pública é formada por um núcleo de meios de comunicação absolutamente uniforme que preserva o regime mas o apodrece por dentro.
Ora foi isto, esta evidência de um mundo autista que Gorbachov, ele próprio criado dentro do sistema, percebeu. Foi contra isto que terá tentado lutar.
Sem, porém, entender que um mísero raio de liberdade poria tudo de pantanas. Como aconteceu. Bastou a ideia de glasnost para fazer desemperrar as línguas. Bastou a perestroika para evidenciar o desastre económico, industrial, financeiro.
É bom lembrar que, no resto do mundo, o movimento comunista já não era aquela mole uniforme , disciplinada, obediente aos ukases do Kremlin. No Oriente, a China atacava a ortodoxia rusa numa perspectiva “revolucinária# e aventureira. E tinha seguidores em toda a parte. No Ocidente, a Jugoslávia há muito que se desprendera do bloco pró-soviético, a Albânia rezava por uma cartilha ainda mais maoísta que a maoísta, e os grandes partidos ocidentais (francês, italiano e o emblemático espanhol) apostavam tudo, mesmo que a diferentes velocidades, no euro-comunismo.
As crises de Berlin, em 1951, da Hungria, 1956, da Checoslováquia (a primavera de Praga, 1968) e o despontar do Solidarnosc na Polónia provavam à evidência quão periclitante era o poder da ideologia que, para se manter, recorria cada vez mais à repressão desenfreada, as poderosas polícias políticas nacionais mas não estancava nem as deserções nem a crescente hostilidade da população.
Este era o panoramsas. Já nada parec,ia poder salvar o sistema quê subsistia apenas e só, graças à repressão. Neste ponto de vista a URSS vivia um período de falta de futuro idêntico ao que se viveu nos anos 70 em Portugal.
O navio estava a naufragar e só não ia ao fundo por ser demasiado grande.
Gorbachov percebeu perfeitamente isto mas enganou-se ao pensar que um pequeno e tímido regresso às míticas origens de 1917 poderia resolver o problema. Não podia, como se viu. E. Aliá, a hostilidade do aparrelho, da nomenclatura, do ortoxia mais vesga fizeram o resto. A triste intentona de Moscovo co a consequente prisão do Secretário Geral numa praia, suscitou um contra golpe popular que fazia lembrar Praga com as populações acercar os tanques dos golpistas. E Yeltsin fez o resto, coisa qu muitos, quase todos, fingem esquecer ou ignorar.
Gorbatchov era um homem só no dia em que regressou à capital e A URSS tinha-se evaporado mesmo se ainda demorou tempo a espernear.
(este texto estava terminado quando, sem qualquer surpresa, soube da nota do PCP . Convenhamos que o “p” final é mais putinista que português. O PCP faz-se de tonto ou então não percebeu nada, coisa que não é de todo improvável.
Chora pelo fim de um país artificial que durante cinquenta anos foi uma espécie de berçário para os militantes portugueses. Foi também o farol, farol autoritário, dos mesmos. E por mais juras de amor à pátria, é verdade que a URSS enchia de orgulho o coração dos escasso número de militantes do interior que com enorme coragem e imensa fé lutavam contra a ditadura. Niso convém dizer que os comunistas não foram os únicos nem os mais numerosos combatentes contra o Estado Novo. Mas foram, sem dúvida, os mais disciplinados, quase sempre os mais eficazes, e seguramente os mais odiosamente perseguidos. E por isso , enquanto a URSS ia para a fossa comum, o PCP conseguia durante algum tempo manter a sua unidade e coesão, expurgando de quando em quando mais um grupo de militantes mas guardando a severa ortodoxia que o caracterizava (e caracteriza). Nunca embarcou nas novidades do euro-comunismo, nunca perdeu a sua identidade original. Porém, os tempos, o tempo, o mundo mudaram e agora, também ele, PCP se vê duramente reduzido em militantes, importância política, controlo de câmaras e deputados. Basta confrontar os últimos 10 ou 15 resultados eleitorais para ver a curva descendente que, sem apelo nem agravo, se acentua.
A nota emitida sobre Gorbatchov não poderia ser outra mas é também a manifestação do autismo que o caracteriza. Paz à sua alma!
Gorbatchov vai sobreviver-lhe!