(2) Ciclo de Negócio, CRISE e crise do euro
(Continuação de artigo anterior com o mesmo título »»»)
5. Numa linguagem muito simplista podemos dizer que ao longo do tempo as actividades económicas têm altos e baixos. Subidas e descida ao longo do século, ao longo da década, ao longo do ano, ao longo do mês, ao longo da semana, ao longo do dia. Em qualquer escala do tempo tem crescimentos e decrescimentos, evoluções mais rápidas e dinâmicas mais lentas. Os economistas passaram a chamar-lhes ciclos, distinguindo uns dos outros, ou pelo nome dos economistas que chamaram a atenção para a sua existência (ex. ciclos de Kondratief; ciclos de Juglar) ou pelo tempo decorrido desde um “ponto de partida” até um “ponto de chegada” que tem uma posição relativa semelhante ao ponto de partida (ex. ultralongo, longo, médio, curto, infracurto). Por vezes também os identificam pelo tipo de mercado em que se manifesta, havendo uns (ex. bolsa de valores) mais sensíveis que outros (ex. da construção civil).
Associada a esta oscilação também foi surgindo dois tipos de análises das temáticas económicas: conjuntural e estrutural. A primeira atende essencialmente aos movimentos de subidas e descidas, ao momento em que estamos na evolução cíclica; a segunda privilegia a tendência de evolução, a dinâmica de conjunto.
Numa primeira leitura podemos dizer que não é de espantar estas dinâmicas conjunturais, tantos são os intervenientes na actividade económica (ex: a comprarem ou a venderem, a pedirem ou a concederem crédito, a pouparem ou a aplicarem recursos), tantas são as intenções com que o fazem (ex: para adquirirem dinheiro ou bens, para fazerem aplicações durante uma vida ou segundos; para satisfazerem a sua ânsia de poder ou para ter lucros), tantas são os encontros e desencontros entre vontades, tão diversa é a informação com que promovem as suas acções (sendo habitual falar em simetria ou assimetria da informação), tanta é a diversidade institucional dos intervenientes (ex. famílias com muitos ou poucos recursos, empresas localizadas numa aldeia ou multinacionais, instituições públicas ou privadas, fábricas metalúrgicas ou gestores de fundos de pensões), tanta é a diversidade sejam quais forem os critérios considerados. Quando olhamos para esta diversidade podemos falar da anarquia da produção, da troca e da repartição de rendimentos.
Só por simplificação de raciocínio, por soberba humana de pretendermos impor à realidade os nossos pensamentos, poderíamos admitir que a economia, uma forma concentrada de falarmos na sociedade, evoluiria de forma simplista: a uma variação constante, a uma taxa de variação constante, ou algo semelhante.
A este propósito poderíamos percorrer a longa história da Filosofia sobre a relação entre o homem e a sociedade (ou a sociedade e o homem), sobre a natureza humana, sobre a liberdade. Excluiríamos Deus porque as ciências sociais (ciências e não meras lucubrações) assentam na laicização da sociedade, na hipótese de partida de que a dinâmica da sociedade é construída pela própria sociedade, de que há “leis naturais” que gerem os agregados humanos. Mas reencontramo-lo nos debates sociológicos do primado do homem sobre a sociedade (com o paradigmático Max Weber) ou da sociedade sobre o homem (com a referência a Durkeime). Os economistas discutiriam, o que não faremos agora, se são as conjunturas que determinam as estruturas ou se, pelo contrário, são as estruturas que determinam as conjunturas. Provavelmente discutiriam com a imprudência idealista de não destrinçarem a diversidade epistemológica (formas diferentes de pensar) da unidade ontológica (dinâmica global das relações sociais de produção e troca).
6. Contudo, mais importante é percebermos que, por detrás da anarquia, despontam probabilidades, regularidades, relações essenciais entre os actos, concatenações lógicas, o que podemos designar por leis científicas do funcionamento dos ciclos.
Leis que podem ser facilitadas ou contrariadas pela acção dos homens, pelo que se costuma designar por política económica, mas que, nesse contexto de conflito continuam a existir. (Para se aprofundar esta questão seria necessário distinguir entre “política económica” e “gestão económica”, entre “superação de contradições” e “desvio de contradições”). Leis, no entanto, que já se perfilavam a partir do momento em que utilizamos a palavra “ciclo” porque ela pressupõe a aceitação de uma sucessão de evoluções que se repetem no tempo, independentemente (ou através) da forma como isso acontece.
Porque este pequeno texto é o caminho para chegarmos a um melhor entendimento do que actualmente se passa com a moeda da União Europeia, com o euro, vamos concentrar a nossa atenção no ciclo de negócios, na fase da crise e em algumas das suas leis.
7. Para não entrarmos em grandes preciosismos técnicos, admita que vai a andar de barco e que há uma ondulação forte. Admita que está a subir uma onda, atinge o seu ponto mais alto. A essa situação segue-se uma descida, uma diminuição de nível, até atingir o ponto mais baixo. Chamemos-lhe a «fase um» da sua navegação. Atingido o nível mais baixo assim continuará durante algum tempo, mais ou menos dilatado conforme a frequência das ondas. Chamemos-lhe a «fase dois» da navegação. Finalmente começa novamente a subir até atingir um nível médio ao que tinha atingido na onda anterior. Chamemos-lhe «fase três». A subida continua até novamente atingir um cume, no qual nos mantemos algum tempo. É a «fase quatro».
Transpondo esta navegação para os ciclos podemos, grosso modo, dizer que a fase um corresponde à crise, a dois à depressão, a três à recuperação e, por fim, a quatro à expansão. Poderíamos adoptar outro tipo de classificações, mas esta parece-nos simples e compreensiva.
Claro que a dinâmica económica não é tão simples, como provavelmente não seria a própria navegação, porque uns ciclos sobrepõem-se a outros ciclos de tipo diferente, porque há uma tendência de evolução de longo prazo, porque existem diferenças de comportamento entre sectores de actividades e entre países, entre mercados locais e globais (apesar de desde 1968 estarmos numa fase de crescente sincronismo), entre empresas (a falência de umas pode ser a centralização e crescimento de outras, por exemplo). Mas a descrição aqui feita parece-nos suficiente para os nossos propósitos.
Porque a nossa cultura construiu a ideia de “progresso”, porque o funcionamento harmónico da actividade económica pressupõe que se venda o que foi produzido, que o procurado seja encontrado, que haja rendimentos para comprar os produtos, as fases consideradas “normais” são a recuperação e a expansão. A depressão é uma fase transitória para se atingir essa tão almejada “normalidade”. Por outras palavras, apenas a crise é considerada “anormal” e de facto assim a podemos considerar porque é o período de explosão dos conflitos, das desarticulações, das contradições. No entanto, tenhamos bem em conta, a crise é uma fase tão importante quanto as outras na reprodução do sistema capitalista. Mais, sendo a anarquia parte integrante da produção, troca e repartição do rendimento do capitalismo, a crise, ao resolver dramaticamente as tensões e os antagonismos que aquela propicia, tem uma função insubstituível na continuidade do sistema.
Concentremos, pois a nossa atenção na crise.
8. As manifestações visíveis da crise são conhecidas: as mercadorias não são vendidas, as empresas têm carências de dinheiro para fazer face aos seus compromissos, muitas dívidas não são pagas, reduz-se o investimento privado (ou a sua taxa de crescimento), atenua-se a criação de emprego e aumenta o desemprego, intensificam-se as falências. As perspectivas de lucro diminuem, o pessimismo penetra em quase todos os interveniente no processo. A queda das cotações nas bolsas de valores é, frequentemente, o primeiro sinal estrondoso de se estar a viver uma fase de crise.
Concomitantemente agravam-se as desigualdades sociais, intensificam-se as tensões sociais. Estas manifestam-se de forma conflitual. Por um lado, as dificuldades existentes para grandes camadas populacionais, a violência ética das desigualdades, o desespero da criação do dia seguinte podem conduzir a situações de ruptura revolucionária. Por outro, a insegurança, a passividade que o desemprego gera numa estratégia de sobrevivência e a incerteza podem gerar uma submissão passiva. Num caso ou noutro o sentido das opções políticas pode ser muito diverso.
A crise é uma expressão do excesso. Faz todo o sentido dizer que “é a miséria na opulência”. Há excesso de mercadorias (mercadorias que estão inseridas num processo de valorização, que são capital, capital-mercadoria) em relação às possibilidades de venda. Há excesso de produção (capital produtivo) em relação às necessidades de produção para o mercado. Há excesso de dinheiro (capital-dinheiro) em relação às possibilidades de utilização rentável, sendo entesourado.
As crises do ciclo de negócios são crises de sobreprodução, crises de excesso de capital. A sua superação passa por uma destruição desse excesso de capital em relação à taxa de lucro esperada.
De um ponto de vista lógico tanto poderíamos falar de excesso de produção como de falta de consumo, sendo a sobreprodução a outra face do subconsumo. Contudo a relação hierarquizada entre produção, repartição do rendimento, troca e consumo, o primado da produção e a condução da dinâmica pelo capital (privado) fazem com que o essencial seja a sobreprodução, sendo a sua manifestação fenomenológica o subconsumo. A superação da crise, no quadro do sistema capitalista, passa inevitavelmente pela destruição espontânea, e dolorosa, de capital sob as suas diversas formas. A leitura pelo subconsumo, permite, no entanto, uma política económica de atenuação da crise, de impedimento dos seus efeitos mais nefastos para as populações.
9. Começámos o antigo anterior por chamar a atenção para o ciclo do capital: aplicar o dinheiro num processo produtivo, produzir mercadorias com um valor superior, vendê-las e retomar novo ciclo.
Na aproximação da crise, numa fase última de alta conjuntura, é frequente já começar-se a sentir as dificuldades de venda, as quais são inicialmente registadas pelo comércio (a retalho e por grosso) e só posteriormente pela indústria, pelas actividades produtivas. O tempo que decorre entre a aplicação do dinheiro (D) e o seu retorno (D’) amplia-se. O sector industrial, em sentido lato, começa a mostrar-se menos lucrativo, de mais difícil e incerta rentabilização. Entretanto os mercados de títulos financeiros continuam com elevados níveis de rentabilidade e de rápida rotação do capital (que pode aumentar pela ânsia de liquidez), com tendência para aumento da importância relativa do capital fictício.
O sucesso das aplicações financeiras e o início das dificuldades comerciais e industriais fazem com uma parte do capital-dinheiro se desvie destas actividades para aquelas aplicações, o que aumenta a “euforia” nos mercados financeiros. Frequentemente esta “euforia”, a aparência de que tudo “corre às mil maravilhas”, é já uma fase prévia da crise de sobreprodução, é uma primeira manifestação desta.
Porque se trata de uma expansão nos mercados financeiros que tem como contrapartida uma retracção do investimento nos sectores produtivos, porque já existem dificuldades de venda das mercadorias e há o perigo de rompimento do pagamento das dívidas, porque essa expansão financeira assenta mais sobre o capital fictício do que no financiamento às empresas, essa dinâmica financeira também se rompe.
Por estas razões uma das primeiras manifestações explícitas da crise são, frequentemente, as brutais quedas de cotação dos títulos nas bolsas, o “pânico” bolsista, o não pagamento das dívidas (o aumento do crédito mal parado), a falta de liquidez da banca e das instituições cuja rentabilização assentava nas aplicações bolsistas.
A aparência é a de que estamos perante uma crise financeira. Admite-se que as dificuldades sobrevenientes são uma sua consequência: que é a crise financeira que gera a crise no sector produtivo, no conjunto da economia. Contudo a sequência efectiva é outra: é o despontar da crise de sobreprodução que empola e retarda a crise financeira, é esta que revela em plenitude a crise.
10. Também a crise que actualmente vivemos parece ter sido gerada por uma crise financeira (localizada nos EUA, do subprime, tendo como momento nevrálgico a falência do Lehman Brothers), mas a crise actual, do capitalismo em fase de globalização, nem foi exportada pelos EUA (embora o que aí aconteceu tenha fortes impactos nos restantes acontecimentos), nem é o resultado de acontecimentos financeiros. É uma crise de sobreprodução tendencialmente mundial.
A sua dinâmica obedece às leis económicas das crises, particularmente evidentes quando estamos perante grandes crises. Contudo as formas que aquelas assumem dependem das características da dinâmica social em cada momento.
A crise actual enquadra-se nas características aqui traçadas, mas assume especificidades, essencialmente resultantes da hegemonia do neoliberalismo, das características da globalização e do tipo de “política económica” adoptada.
A sua análise permitirá ver de forma mais clara a situação actual, nomeadamente a crise do euro, assunto de que nos ocupará em próxima conversa.