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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

O novo olimpo ou como o mercado só o é para alguns

sociodialetica, 04.02.12

1. O “mercado” ocupa um lugar mais importante que Deus. O desabafo tradicional “se Deus quiser” deu lugar a “se o mercado quiser”. Mantenho o meu emprego se o mercado quiser. Serei chamado para a administração de uma empresa se o mercado quiser. Teremos um futuro melhor se o mercado quiser. As desigualdades sociais aumentarão se o mercado quiser. O decrescimento económico será forte se o mercado quiser. A política de austeridade continuará se o mercado quiser. Os políticos no poder tendem a ser cretinos se o mercado quiser. Enfim, Deus continuará a existir se o mercado quiser.
É verdade, a existência de Deus depende dos mercados. Se fossem cumpridos os desígnios do mercado os trabalhadores por conta de outrem transformavam-se em robots, os ricos continuariam a sê-lo, os reformados, os velhos e os indigentes morreriam. Os reguladores aumentariam até ao absoluto a sua incompetência, o Estado passava a ser gerido por alguma empresa, dos ricos, claro está. Seria a santa consagração do equilíbrio económico. A realização plena dos mercados, porque deixaria de haver sociedade, e com ela morreria Deus.

 

2. Mas esse mercado tem que se lhe diga! É muito complicado. Está muito longe de ser homogéneo. Já sabíamos que tem “bolhas”, mas podemos admitir que tem outras impurezas, porque o mercado para uns não o é para outros.
É verdade. Se um supermercado vende um produto estragado que provoca a morte de muitos clientes o mercado castiga-o e terá que fechar as portas. Se uma empresa lança um produto que ninguém quer comprar, muda de ramo ou fecha as portas. Se um jornal diz que vivemos no melhor dos mundos e que Portugal é a porta de entrada para o paraíso... Bem, este é um mau exemplo: nesse caso era capaz de aumentar as vendas porque gostamos de ser enganados e viver na ilusão. Duvida? Está comprovado cientificamente pelas tendências de voto nas eleições.
Enfim, o querer dos mercados faz com que se seja expulso desse paraíso quando se tomam decisões erradas, quando se lançam produtos errados, quando se dão informações erradas. Saem do mercado e vão para o inferno da indigência. Mas esse mesmo mercado faz com que essas decisões erradas, esses produtos errados, essas informações erradas possam conduzir alguns ao olimpo do mercado, o espaço restrito dos bem-aventurados.
Não sabia? Mas olhe que eles, super-heróis, são bem visíveis e continuam a comportar-se com o estatuto que o olimpo lhes dá. Isso mesmo. Estamos a falar das empresas de rating.

 

3. Tem dificuldade em conhecer todas as suas próprias fraquezas e potencialidades, porque nem às paredes confessa? Não se preocupe porque é uma limitação de todos: é difícil conhecermo-nos a nós próprios. Um empresário tem dificuldade em gerir a sua empresa e em explorar todos os caminhos com que sonha. Se se pretender ter uma avaliação crítica de uma grande empresa serão precisos vários técnicos experimentados durante um largo período de tempo, para se ter um diagnóstico da situação, pontos fortes e fracos, sinais de alerta, hipóteses de evolução futura no mundo globalizado. Se se pretender conhecer os recursos de um país maior será o percurso, mais trabalho e tempo serão necessários, na melhor das hipóteses, na hipótese dos participantes desse estudo se entenderem.
É difícil fazer uma avaliação, mas só para quem não está no olimpo do mercado. Para estes bastam poucos minutos, poucas horas, no máximo do máximo, para avaliar uma empresa, para avaliar um país, para avaliar o mundo. A incompetência, o desaforo, a falta de vergonha rodopiam nos ares térreos, erguem-se ao olimpo da audiência submissa internacional e transformam-se em informação fidedigna sobre os mercados.
Qual o espanto? Não será o olimpo do mercado o melhor centro de observação do próprio mercado?

 

4. Não foi voz corrente e fundamentada – por acaso viram o filme Inside Job? – de que as empresas de rating foram das entidades responsáveis pela crise do subprime, que mergulhou o mundo na crise profunda que hoje ainda vivemos? Não é um facto histórico que empresas que foram à falência no início dessa crise financeira estavam muito bem cotadas pelas empresas de rating e que esse pequeno engano matou mais pessoas que a intoxicação do mercado? É verdade, por isso não foram afastadas do mercado. Comandam o mundo. Já colocaram o louro da vitória e cantam balelas no olimpo.
Compreende-se, elas fizeram o seu melhor. As pessoas que as ouviram é que não tiveram a capacidade de perceber que as informações delas estavam erradas. Entenda-se, elas são a Standart & Poor's, a Moody's e a Fitch, não é qualquer mexeruca em apartamento acanhado.

 

5. Ainda se lembra do que aprendeu sobre o mercado de concorrência perfeita? Nenhuma empresa ou consumidor tem capacidade de influenciar o mercado, o Estado não intervém, há liberdade de entrada e saída. Bonito. A versão económica da justiça divina. Por isso o mercado deusificou-se.
É exatamente o que se passa com as empresas de rating. Cada uma das três tem a sua metodologia própria de avaliação mas estão sempre de acordo. Elas avaliam as instituições mas são pagas para avaliarem, são pagas pelos próprios interessados na avaliação. Idiossincrasia estranha? Não, um negócio como qualquer outro. Tu dás e eu digo de ti. Tu dás muito e eu direi bem de ti. Tu pagas bem e eu direi bem de ti se ninguém me pagar ainda melhor para dizer mal de ti. A vida é assim.
É a era dos mercados financeiros. Os produtos transacionados podem surgir de qualquer mente engenhosa, de qualquer modelo matemático ou da mesquinha realidade de alguma empresa emissora. Os “derivados”, os “estruturados” e outros opacos processos de transferir responsabilidades e obter recursos, proliferam. As empresas de rating entram no jogo. Por um lado contribuem para a criação desses títulos, por outro classificam-nos e contribuem positiva ou negativa para a sua rentabilidade e a sua transação.
Diriam alguns, certamente mal intencionados, que as empresas de rating estão mergulhadas em inumeráveis conflitos de interesse. Seria como se num jogo de futebol o ponta de lança umas vezes marcasse na baliza do adversário, outras vezes na sua própria baliza. Não por autogolo acidental, mas porque para isso foi contratado pelas duas equipes. Comentários mal intencionados. O pecado do orgulho a impedir-nos reconhecer as nossas próprias limitações humanas. Todas as religiões têm os seus dogmas. No olimpo do mercado o conflito de interesses é a expressão máxima do saber divino, um dogma não revelado.

 

6. Coisas da vida. De hoje.
E amanhã?

 

7. No último artigo da trilogia sobre “Ciclo de negócios, crise e crise do euro” terminávamos do seguinte modo:


“Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica? Os “mercados” têm uma intelligentia?”


Ainda não sabemos a resposta. Não sabemos se as empresas de rating são o Zeus da época moderna, mas pelo menos são o Apolo.