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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Da Democracia-nação à Democracia-mercado

sociodialetica, 01.04.11

1. O Estado é uma parte da sociedade, entendendo esta como a totalidade das relações entre as pessoas. Autonomiza-se enquanto estrutura política, cujo conteúdo é determinado pela referida totalidade. O Estado é um factor de coesão da unidade de uma sociedade (o que simplistamente se pode designar como “organização política da nação”) e, simultaneamente, uma condensação dos diferentes grupos sociais em presença, uma expressão da correlação de forças entre esses mesmos grupos, cada um deles com dinâmicas, estruturações e racionalidades diferentes.

Desta complexidade da relação entre a sociedade e o Estado resultam leituras possíveis totalmente diferentes: (1) “o Estado é um instrumento político dos grupos sociais dominantes”, na medida em que a sua vertente mais importante é ser uma expressão da correlação de forças; (2) “o Estado é uma instituição soberana que impõe a sua vontade à restante sociedade”, na medida que é uma estrutura política que possui o poder, incluindo o poder coercivo; (3) “o Estado é uma estrutura política com autonomia de existência e de acção, mas que, em última instância reflecte as complementaridades e contradições da sociedade em que se insere”, na medida em que se considere a globalidade dos elementos presentes.

Optamos por esta terceira posição, ficando por esclarecer qual é o peso relativo da autonomia e da dependência, o que remete para uma infinidade de factores influenciadores, estrutural e conjunturalmente determinados.

 

2. Nos últimos trinta anos tem-se privilegiado, por razões ideológicas, a relação entre o Estado e as facetas das relações sociais que habitualmente se designam por “economia”. Dessa deliberada preferência e da organização adoptada na mundialização da economia resultaram diversos processos de enfraquecimento da autonomia relativa do Estado.

Em primeiro lugar, o funcionamento dos mercados sem uma intervenção do Estado para além da sobredeterminação jurídica e a livre circulação dos capitais e dos bens conduziram a um aumento da concentração e centralização do capital privado à escala mundial, aumentando a força social dos grupos económicos e o seu domínio de sectores estratégicos. Ao mesmo tempo os Estados enfraquecem a sua capacidade de negociação e intervenção.

Enquanto antes as multinacionais necessitavam de obter o apoio dos Estados para se instalarem num país, passam a ser os Estados a competirem entre si para atraírem empresas para a sua região. A deslocalização das empresas à escala mundial dá-lhes ainda mais capacidade de manobra e domínio.

Em segundo lugar, uma parte crescentemente significativa do capital assume a forma de capital-dinheiro e movimenta-se nos mercados bolsistas. Cresce a importância do capital fictício. A capacidade de reprodução e ampliação deste faz com que os valores transaccionados diariamente na bolsa ultrapassassem o produto anual mundial. O capital especulativo tem mais capacidade de manipular as bolsas e os câmbios que os governos. Para além disso influencia ou controla sectores nevrálgicos do funcionamento da sociedade, como por exemplo os fundos de pensões e a dívida pública.

O consumismo e a facilidade de recurso ao crédito, o esquecimento deliberado de que, em algum momento, as dívidas têm de ser pagas, conduziram a um sobre-endividamento generalizado que torna o capital financeiro simultaneamente fragilizado, enquanto credor,  e dominante, captando sempre e sempre mais rendimentos à escala mundial.

Em terceiro lugar, esta financiarização da economia exigiu uma ampliação significativa da economia paralela com um peso elevado e crescente na economia mundial. Esta economia paralela existe sem qualquer viabilidade de controlo da parte dos Estados ou quaisquer outras instâncias reguladoras. Desenvolvem-se à margem do sistema fiscal e reduz o financiamento do Estado e da sociedade. São as máfias que dominam uma parte crescente do produto mundial.

Em quarto lugar a volatilidade do capital das empresas, a sua ramificação por todo o mundo e a facilidade com que a propriedade muda entre grupos dominantes fazem com que a capacidade de decisão dos Estados diminua. Nas questões económicas os seus parceiros deixam de ser os restantes Estados, embora formalmente e no direito internacional o continuem a ser, e passam a ser os grupos económicos, os difusos proprietários do capital. Esta dificuldade de identificação dos representantes do capital em cada momento debilita as possibilidades de luta dos cidadãos e grupos sociais pelos seus direitos, o que, indirectamente, enfraquece o Estado, enquanto expressão política dessa mesma sociedade.

A transferência da decisão da relação Estado-Estado para a relação Estado-empresa foi tanto mais grave quanto menor é o desenvolvimento económico-social das sociedades.

O neoliberalismo conseguiu os seus objectivos por duas vias convergentes:  (1) aumento do poder económico dos grandes grupos económicos à escala mundial, em consequência da livre circulação de capital e bens (não de homens, que não usufruem dessas liberdades e passam a ser um subproduto da actividade económica); (2) “emagrecimento do Estado” como objectivo político pré-estabelecido

Em síntese, nos últimos trinta anos temos assistido a um enorme enfraquecimento da autonomia dos Estados e da sua capacidade de influenciar a reprodução das sociedades. Simultaneamente aumenta a sua dependência dos grupos sociais economicamente dominantes.

O peso relativo da autonomia diminuiu (consequência de acto deliberado, imposição ideológica e resultado da globalização) e o da dependência aumentou.

 

3. Diminuindo a autonomia e aumentando a dependência, podendo rondar a subserviência, a política pode fazer-se sem objectivos, sem ideias, sem projectos de transformação da sociedade. O Estado abandona o “pretendemos contribuir para construir uma sociedade melhor” pela banalidade de que “a função do Estado é criar oportunidades aos cidadãos”.

Esvaem-se os objectivos, subvalorizam-se os programas políticos, intoxica-se a população com o pânico, promove-se a incapacidade de reflexão sobre os grandes problemas nacionais e internacionais, personaliza-se a política.

Ser político é uma carreira profissional como a de ser médico ou carpinteiro. É a “classe política”. Os candidatos a políticos só têm de fazer uma carreira adequada: escolher certos cursos, criar criteriosamente “amizades”, pertencer às juventudes de um partido susceptível de ganhar as eleições, sujeitar-se sorridentemente a subserviências enquanto “passa a mão pelo pêlo” de poderosos, estar disponível a “baixar a espinha” mesmo quando lhe causa algum desconforto. Mesmo com tão “dolorosos” procedimentos têm uma grande vantagem: não precisam de exercer uma actividade profissional, nem de cansar os neurónios com laivos de cultura.

Se alguns partidos políticos mantêm uma postura tradicional de luta por uma sociedade melhor, se muitos militantes em todos os partidos ainda têm uma chama de idealismo, ideologia e utopia transformadora, “a personalização da política”, generalizadamente seguida, “destruiu os padrões de voto antigo e tradicionais”.

Os políticos “dão a cara” mas quase toda a política (leis, planos, propostas) é feita por gabinetes privados, com nomes nacionais ou estrangeiros. Recém-licenciados, formatados pela universidade, funcionários dessas empresas, elaboram políticas que decidem da vida de todos os cidadãos. Esta contratação de serviços tem várias vantagens para o Estado: escusam de saber de um assunto para exercerem um cargo político, distribuem milhões a amigos ou futuros amigos, criam um coro de vozes apoiantes e intoxicadoras da opinião pública, compram-se votos e novos caciques mediáticos. Só não tem vantagens para a esmagadora maioria dos cidadãos.

O vazio de ideias está frequentemente associado a uma política de medo. É preciso em cada dia prognosticar que o amanhã poderá ser pior. E só o não será porque lá estão os super-homens que crescem e se reproduzem no Estado.

 

4. Esta evolução é designada por alguns como a passagem do Estado-nação ao Estado-mercado.

Este Estado-mercado, entretanto, enfrenta, como diz Napoleoni, em O Lado Obscuro da Economia, uma dupla crise: “uma crise de racionalidade e uma crise de legitimidade”. Uma crise da racionalidade porque é incapaz de solucionar nenhum dos grandes problemas nacionais ou internacionais. De legitimidade porque “um Estado fraco não pode proteger os seus cidadãos”. “Consequentemente esse Estado também não pode contar com a lealdade dos mesmos”. A elevada abstenção eleitoral é uma das suas facetas.

“Sinais ao mercado”. A quem serve?

sociodialetica, 13.03.11

“É preciso dar sinais ao mercado” é uma das palavras de ordem da política contemporânea.

 

Está certo. Os Estados com reduzida capacidade de intervenção económica, menos poderosos que muitas das empresas internacionais, que juraram serem fiéis à livre circulação dos capitais, que pertencem à Organização Mundial do Comércio, que sonharam viver à sombra dos credores internacionais, que incorporaram nas suas estruturas os “senhores do dinheiro”, esses Estados precisam de agradar a quem os sustenta.

 

É certo que desde 2008 se têm mostrado bem comportados, ao aproveitarem o dinheiro dos contribuintes e dos utilizadores dos serviços públicos para salvarem banqueiros e especuladores, hipotecando a sobrevivência futura. Mas o respeito pelos que mandam nunca é de mais.

 

Contudo, dou comigo muitas vezes a pensar no que é “dar sinais ao mercado”. Apesar de uma longa vida familiar tenho a experiência de não conseguir transmitir à minha esposa, lúcida e inteligente, os sinais que pretendo: apago ostensivamente as luzes inutilmente acesas, mostro que tapei a pasta de dentes, fecho a porta que gera uma corrente de ar. Faço isso há anos, mas terei que continuar a fazer porque os sinais não produzem resultados. Será que os mercados são mais racionais que o companheiro de uma vida?

 

Pergunta inútil porque todos sabemos que Deus é omnisciente.

 

Mesmo assim pergunto: qual é a reacção que o Deus Mercado pode ter aos sinais que o Estado lhe transmite?

 

Quando se não cumpre o contrato existente entre o Estado e os seus funcionários, quando se viola o compromisso de longo prazo que são as reformas, que sinal se transmite? Que o Estado está a cortar nas despesas ou que o Estado não é pessoa de bem porque não cumpre os contratos? Quando se aumentam os impostos, sobretudo sobre a classe média, que sinal se transmite? Que o Estado está a aumentar as suas possibilidades de pagamento futuro ou que está a liquidar paulatinamente a classe média, agravando a instabilidade social futura? Quando o Estado corta na Educação, na Investigação Científica, na Saúde e na Cultura que sinal se transmite? Que o Estado está a racionalizar as despesas ou que o Estado está a diminuir a sanidade social e a capacidade produtiva futuras, a afundar a competitividade?

 

Pergunta mais uma vez inútil porque hoje o tempo é de curto prazo. Um tempo balizado pelas eleições, pulsando ao sabor das cotações na bolsa e das taxas de juro, dos bónus de produtividade, da durabilidade da informação privilegiada, da ilusão de se enganar o futuro.

 

Mesmo assim pergunto: é esse mundo sem estratégia, sem homens comuns, sem futuro colectivamente construído que nós queremos?

Fora o Estado. Viva o Estado. Que Estado?

sociodialetica, 11.03.11

1. Andamos tão preocupados com as nossas condições de vida, com alguns dos acontecimentos na Líbia (os relatados pelos órgãos de informação), e com o filho do hipopótamo carinhosamente mostrado pela Televisão, que quase nos passou despercebida uma notícia sobre a Islândia.

Uma operação policial inglesa liderada pelo organismo especializado no combate à fraude (eles têm esses estranhos hábitos de cumprir a lei!) levou à prisão de dois importantes empresários britânicos. São acusados de pertencerem a uma rede internacional associada à falência do banco Kaupthing, “um dos três bancos da Islândia que caiu no auge do aperto do crédito em Outubro de 2008”, arrastando o país e os islandeses para uma situação dramática. Segundo a mesma notícia de O Económico, de 10/03/2011, “o banco Kaupthing tinha em carteira empréstimos de 8,6 mil milhões de euros que eram, segundo a primeira-ministra Johanna Sigurdardottir, «se não ilegais, completamente sem ética». No conjunto, os três bancos atingiam dívidas 12 vezes superiores ao produto islandês, o que forçou o país a pedir uma ajuda de 3,3 mil milhões de euros ao Fundo Monetário Internacional”.

 

2. Esse descalabro bancário não resultou do mau comportamento de alguns, mas da lógica do sistema: a financiarização da economia, a liberdade de circulação de capitais (não de homens!), o poder dado ao mítico mercado. O encanto pela “bola de neve” do crédito que gera crédito, como se nunca fosse preciso pagar as dívidas. Como hoje se reconhece, o sistema financeiro americano, centro nevrálgico da financiarização, especializou-se em criar ferro-velho e vendê-lo como ouro. E todos os outros, incluindo as austeras instituições financeiras alemãs, acumularam o que hoje se designa por lixo tóxico financeiro.

 

3. Quando o dólar ameaçava deixar de ser internacionalmente convertível em ouro (nos longínquos anos de 60/70 do século passado), discutia-se as vantagens e desvantagem do regime de padrão-ouro, de câmbios fixos ou de câmbios flutuantes na estruturação do sistema monetário internacional. Num desses debates Jacques Rueff, o francês defensor do padrão- ouro, opositor do liberalismo, prognosticava que a chamada liberdade económica, o “livre” funcionamento dos mercados, seria a organização económico-social que exigiria mais frequentemente os governos reunirem de emergência para promoverem políticas económicas. A história deu-lhe razão. Mas nunca imaginou é que essa intervenção dos Estados também seria para prender os defraudadores e combater as máfias. Então era quase impossível prever a degenerescência das relações éticas, como a que vivemos há duas décadas.

 

4. Será que se pode continuar a defender o “emagrecimento” do Estado, o “haraquiri” do Estado? Será que se pode continuar a defender que os mercados se auto-regulam e que têm uma dignidade institucional superior ao homem? Será que há uma “Declaração Universal dos Direitos dos Mercados”?

A questão não está em mais ou menos Estado, mas em saber que Estado é capaz de repor a dignidade e o respeito pela maioria dos cidadãos do país e do mundo.