Da Democracia-nação à Democracia-mercado
1. O Estado é uma parte da sociedade, entendendo esta como a totalidade das relações entre as pessoas. Autonomiza-se enquanto estrutura política, cujo conteúdo é determinado pela referida totalidade. O Estado é um factor de coesão da unidade de uma sociedade (o que simplistamente se pode designar como “organização política da nação”) e, simultaneamente, uma condensação dos diferentes grupos sociais em presença, uma expressão da correlação de forças entre esses mesmos grupos, cada um deles com dinâmicas, estruturações e racionalidades diferentes.
Desta complexidade da relação entre a sociedade e o Estado resultam leituras possíveis totalmente diferentes: (1) “o Estado é um instrumento político dos grupos sociais dominantes”, na medida em que a sua vertente mais importante é ser uma expressão da correlação de forças; (2) “o Estado é uma instituição soberana que impõe a sua vontade à restante sociedade”, na medida que é uma estrutura política que possui o poder, incluindo o poder coercivo; (3) “o Estado é uma estrutura política com autonomia de existência e de acção, mas que, em última instância reflecte as complementaridades e contradições da sociedade em que se insere”, na medida em que se considere a globalidade dos elementos presentes.
Optamos por esta terceira posição, ficando por esclarecer qual é o peso relativo da autonomia e da dependência, o que remete para uma infinidade de factores influenciadores, estrutural e conjunturalmente determinados.
2. Nos últimos trinta anos tem-se privilegiado, por razões ideológicas, a relação entre o Estado e as facetas das relações sociais que habitualmente se designam por “economia”. Dessa deliberada preferência e da organização adoptada na mundialização da economia resultaram diversos processos de enfraquecimento da autonomia relativa do Estado.
Em primeiro lugar, o funcionamento dos mercados sem uma intervenção do Estado para além da sobredeterminação jurídica e a livre circulação dos capitais e dos bens conduziram a um aumento da concentração e centralização do capital privado à escala mundial, aumentando a força social dos grupos económicos e o seu domínio de sectores estratégicos. Ao mesmo tempo os Estados enfraquecem a sua capacidade de negociação e intervenção.
Enquanto antes as multinacionais necessitavam de obter o apoio dos Estados para se instalarem num país, passam a ser os Estados a competirem entre si para atraírem empresas para a sua região. A deslocalização das empresas à escala mundial dá-lhes ainda mais capacidade de manobra e domínio.
Em segundo lugar, uma parte crescentemente significativa do capital assume a forma de capital-dinheiro e movimenta-se nos mercados bolsistas. Cresce a importância do capital fictício. A capacidade de reprodução e ampliação deste faz com que os valores transaccionados diariamente na bolsa ultrapassassem o produto anual mundial. O capital especulativo tem mais capacidade de manipular as bolsas e os câmbios que os governos. Para além disso influencia ou controla sectores nevrálgicos do funcionamento da sociedade, como por exemplo os fundos de pensões e a dívida pública.
O consumismo e a facilidade de recurso ao crédito, o esquecimento deliberado de que, em algum momento, as dívidas têm de ser pagas, conduziram a um sobre-endividamento generalizado que torna o capital financeiro simultaneamente fragilizado, enquanto credor, e dominante, captando sempre e sempre mais rendimentos à escala mundial.
Em terceiro lugar, esta financiarização da economia exigiu uma ampliação significativa da economia paralela com um peso elevado e crescente na economia mundial. Esta economia paralela existe sem qualquer viabilidade de controlo da parte dos Estados ou quaisquer outras instâncias reguladoras. Desenvolvem-se à margem do sistema fiscal e reduz o financiamento do Estado e da sociedade. São as máfias que dominam uma parte crescente do produto mundial.
Em quarto lugar a volatilidade do capital das empresas, a sua ramificação por todo o mundo e a facilidade com que a propriedade muda entre grupos dominantes fazem com que a capacidade de decisão dos Estados diminua. Nas questões económicas os seus parceiros deixam de ser os restantes Estados, embora formalmente e no direito internacional o continuem a ser, e passam a ser os grupos económicos, os difusos proprietários do capital. Esta dificuldade de identificação dos representantes do capital em cada momento debilita as possibilidades de luta dos cidadãos e grupos sociais pelos seus direitos, o que, indirectamente, enfraquece o Estado, enquanto expressão política dessa mesma sociedade.
A transferência da decisão da relação Estado-Estado para a relação Estado-empresa foi tanto mais grave quanto menor é o desenvolvimento económico-social das sociedades.
O neoliberalismo conseguiu os seus objectivos por duas vias convergentes: (1) aumento do poder económico dos grandes grupos económicos à escala mundial, em consequência da livre circulação de capital e bens (não de homens, que não usufruem dessas liberdades e passam a ser um subproduto da actividade económica); (2) “emagrecimento do Estado” como objectivo político pré-estabelecido
Em síntese, nos últimos trinta anos temos assistido a um enorme enfraquecimento da autonomia dos Estados e da sua capacidade de influenciar a reprodução das sociedades. Simultaneamente aumenta a sua dependência dos grupos sociais economicamente dominantes.
O peso relativo da autonomia diminuiu (consequência de acto deliberado, imposição ideológica e resultado da globalização) e o da dependência aumentou.
3. Diminuindo a autonomia e aumentando a dependência, podendo rondar a subserviência, a política pode fazer-se sem objectivos, sem ideias, sem projectos de transformação da sociedade. O Estado abandona o “pretendemos contribuir para construir uma sociedade melhor” pela banalidade de que “a função do Estado é criar oportunidades aos cidadãos”.
Esvaem-se os objectivos, subvalorizam-se os programas políticos, intoxica-se a população com o pânico, promove-se a incapacidade de reflexão sobre os grandes problemas nacionais e internacionais, personaliza-se a política.
Ser político é uma carreira profissional como a de ser médico ou carpinteiro. É a “classe política”. Os candidatos a políticos só têm de fazer uma carreira adequada: escolher certos cursos, criar criteriosamente “amizades”, pertencer às juventudes de um partido susceptível de ganhar as eleições, sujeitar-se sorridentemente a subserviências enquanto “passa a mão pelo pêlo” de poderosos, estar disponível a “baixar a espinha” mesmo quando lhe causa algum desconforto. Mesmo com tão “dolorosos” procedimentos têm uma grande vantagem: não precisam de exercer uma actividade profissional, nem de cansar os neurónios com laivos de cultura.
Se alguns partidos políticos mantêm uma postura tradicional de luta por uma sociedade melhor, se muitos militantes em todos os partidos ainda têm uma chama de idealismo, ideologia e utopia transformadora, “a personalização da política”, generalizadamente seguida, “destruiu os padrões de voto antigo e tradicionais”.
Os políticos “dão a cara” mas quase toda a política (leis, planos, propostas) é feita por gabinetes privados, com nomes nacionais ou estrangeiros. Recém-licenciados, formatados pela universidade, funcionários dessas empresas, elaboram políticas que decidem da vida de todos os cidadãos. Esta contratação de serviços tem várias vantagens para o Estado: escusam de saber de um assunto para exercerem um cargo político, distribuem milhões a amigos ou futuros amigos, criam um coro de vozes apoiantes e intoxicadoras da opinião pública, compram-se votos e novos caciques mediáticos. Só não tem vantagens para a esmagadora maioria dos cidadãos.
O vazio de ideias está frequentemente associado a uma política de medo. É preciso em cada dia prognosticar que o amanhã poderá ser pior. E só o não será porque lá estão os super-homens que crescem e se reproduzem no Estado.
4. Esta evolução é designada por alguns como a passagem do Estado-nação ao Estado-mercado.
Este Estado-mercado, entretanto, enfrenta, como diz Napoleoni, em O Lado Obscuro da Economia, uma dupla crise: “uma crise de racionalidade e uma crise de legitimidade”. Uma crise da racionalidade porque é incapaz de solucionar nenhum dos grandes problemas nacionais ou internacionais. De legitimidade porque “um Estado fraco não pode proteger os seus cidadãos”. “Consequentemente esse Estado também não pode contar com a lealdade dos mesmos”. A elevada abstenção eleitoral é uma das suas facetas.