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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Mário Centeno na liderança do Eurogrupo

José Carlos Pereira, 04.12.17

eleição de Mário Centeno para a liderança do Eurogrupo é positiva para Portugal e naturalmente para o ministro português, que vê assim o seu trabalho reconhecido fora de portas. É positiva para Portugal, desde logo, porque garante que as contas públicas nacionais ficam "impedidas" de divergir das regras europeias, pois Mário Centeno terá de ser um exemplo no cumprimento das metas acordadas entre os seus pares.
Tal cumprimento, por outro lado, contém um potencial de risco na relação com os partidos à esquerda do PS que têm suportado a solução governativa. Não restará a Mário Centeno (e a António Costa) outro rumo que não seja seguir, no fio da navalha, entre o apego a Bruxelas e a satisfação possível das ambições dos parceiros parlamentares do PS. Até quando, ver-se-á.

Grécia e Portugal

José Carlos Pereira, 04.02.15

Se há coisa que as recentes eleições na Grécia demonstraram foi que os gregos estavam fartos dos partidos e dos políticos que os governaram nas últimas décadas e em particular nos últimos anos. A vitória do Syriza foi a explosão de um país farto de uma austeridade sem freio e que só trouxe consequências negativas ao povo grego.

Pese embora os erros, que têm de ser assumidos, das políticas e das práticas que ao longo dos anos conduziram a um endividamento brutal da Grécia – mais de 175% do PIB! – a receita decretada pela Europa e pelas instâncias internacionais só agravou a situação. Com efeito, nenhum país pode aguentar por muito tempo uma situação social em que o desemprego atinge mais de 25% da população, os salários de quem manteve o seu posto de trabalho foram reduzidos entre 30% e 40% nos últimos três anos e os impostos aumentaram entre sete e nove vezes. O resultado final foi que cerca de um quarto da população caiu no limiar da pobreza. Por muitos abusos e desvios que tenham sido cometidos anteriormente, nenhum país pode sobreviver incólume a estes indicadores.

A rápida constituição do novo executivo grego – uma lição para muitos países, incluindo Portugal – mostrou que a coligação entretanto formada entre o Syriza e os Gregos Independentes tinha a uni-la sobretudo a vontade de reverter a relação com a Europa e com as instâncias internacionais que aplicaram fortíssimas medidas de austeridade à Grécia. Os últimos dias têm mostrado a vontade dos governantes gregos de negociarem novas condições para a sua dívida e a Europa não pode dizer não a essa possibilidade.

O ministro das Finanças Varoufakis já deixou claro que não pretende solicitar aos parceiros europeus um perdão da dívida, mas sim “um menu de trocas de dívida”, prevendo a constituição de obrigações ligadas ao crescimento do PIB, em troca da dívida detida pelos países da zona euro, e obrigações perpétuas para substituir as que são actualmente detidas pelo Banco Central Europeu. Varoufakis não podia ser mais certeiro na entrevista que ontem deu ao “Financial Times”: “Ajudem-nos a reformar o nosso país e dêem-nos alguma folga orçamental para fazermos isso, senão continuaremos a sufocar e tornar-nos-emos uma Grécia deformada em vez de uma Grécia reformada”.

A ronda negocial prevista para os próximos dias será determinante para perceber como vai a União Europeia reagir às propostas apresentadas e que flexibilidade vai demonstrar perante o executivo grego. O que se torna patético é vermos o Governo português e os partidos da maioria persistirem na tese do “bom aluno, modesto, subserviente, agradecido e de chapéu na mão”, reagindo com total sobranceria às iniciativas do seu congénere grego, que tem a legitimidade acrescida de quem saiu agora de eleições.

De resto, Portugal, assim como a Irlanda, a Itália ou a Espanha, só tem a ganhar com um processo negocial bem-sucedido entre a Grécia e a Europa. Sobre isso não devia haver quaisquer dúvidas. Recorde-se, aliás, que a Grécia, apesar de ser o país com a maior dívida pública tem um custo para o serviço da dívida, proporcionalmente ao PIB, inferior ao suportado por Portugal ou pela Itália. Segundo o Think Tank Bruegel, os encargos com a dívida grega atingiriam os 4,3% do PIB para uma dívida de 175% do PIB, bastante abaixo dos 5% a pagar por Portugal para gerir cerca de 128% de dívida pública e dos 4,7% suportados por Itália para uma dívida também equivalente a 128% do PIB.

Como se tem visto, as medidas tardias que têm sido tomadas no âmbito da zona euro, como a recente decisão do BCE de injectar dinheiro através da compra de dívida pública, durante muito tempo prontamente recusada por Pedro Passos Coelho, resultam sempre em benefício das economias mais expostas e dos países sob programa de ajustamento. Aproveitar a boleia grega para melhorar as condições de pagamento da nossa dívida e aliviar por essa via a austeridade que vitima os cidadãos e as empresas nacionais seria um passo inteligente do Governo PSD/CDS. Mas não devemos contar com tal empenho.

A menos de um ano das eleições legislativas, resta-nos esperar que o PS de António Costa saiba interpretar bem os ventos de mudança que sopram de Atenas até Bruxelas e consiga bater-se, em conjunto com outros aliados, por uma Europa mais solidária, integradora e respeitadora das especificidades nacionais.

(3) Ciclo de Negócio, Crise e CRISE DO EURO

sociodialetica, 23.08.11

(Continuação de artigos anteriores com o mesmo título [1] [2])

 

11. As fases do ciclo e as crises manifestam-se de acordo com as leis que as regem, mas assumindo formas, intensidades, interligações, harmonias e conflitos diferentes conforme as especificidades de cada momento, conforme os comportamentos típicos e efectivos dos intervenientes na sociedade, desde o Estado às empresas. As leis são regularidades explicitadas através da observação imediata das irregularidades, enquanto aparências de fogachos do acaso.

A crise que se iniciou em 2008 e que continuamos a viver é frequentemente comparada com a dramaticamente famosa crise de 1929/33 sobre a qual é importante recordar algumas imagens:

  • Tudo parece ter começado na bolsa. “Os sintomas da crise já tinham aparecido no início de 1929 (leve queda da Bolsa de Nova York), a produção industrial americana já havia começado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando um período de leve recessão econômica, e em setembro aconteceu a queda da Bolsa de Londres. Em agosto, a taxa de juros foi levada de 5% para 6%, numa tentativa de reduzir o volume de crédito, mas já era tarde demais. A orgia de lucros, finalmente, estourou a 24 de outubro de 1929: as cotações do Stock Exchange de Nova York afundaram 50% em um só dia. Estes preços estabilizaram-se ao longo do final de semana, para caírem drasticamente novamente na quarta feira, 28 de outubro. Muitos acionistas entraram em pânico. Cerca de 16,4 milhões de ações subitamente foram postas à venda na quinta feira, 29 de outubro, a “Quinta-Feira Negra”. O excesso de ações à venda, e a falta de compradores, fizeram com que os preços destas ações caísse cerca de 80%. Até o final do mês, seguiram-se novas derrubadas de preços e uma onda de falências. Milhares de acionistas perderam, literalmente da noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham.”
  • A violência do não pagamento das dívidas alterou radicalmente o sistema monetário: “Em 1931-1932, a Inglaterra, Canadá, a Escandinávia e os EUA abandonaram o padrão-ouro; em 1936, somaram-se a eles Holanda e Bélgica, finalmente também a França”. (...) “A desvalorização se mostrava incapaz de sustar as fugas de capitais, inclusive as reforçava. A maioria dos países latino-americanos, cujas moedas foram depreciadas em 1929 e 1930, recorreu ao controle cambial em 1931 e 1932. Na Europa, vários países aliaram igualmente a desvalorização e o controle cambial.”
  • A actividade económica produtiva decresce violentamente: “Em 1932, a produção mundial tinha caído 33% em valor; o comércio mundial, 60%; o Birô Internacional do Trabalho contabilizava 30 milhões de desempregados (cálculo modesto). Os países mais atingidos pela crise, além dos Estados Unidos, foram a Alemanha, Austrália, França, Itália, o Reino Unido [onde a taxa de desemprego atingiu 20%],  e especialmente o Canadá. (...) O comércio mundial desabou: reduziu-se a um terço do seu valor entre 1929 e 1933. O desabamento se devia, em parte, à queda pela metade dos preços-ouro mundiais. Os índices da produção industrial nos principais países caíram na mesma proporção (50%). E disso resultou um número enorme de desempregados: 12 a 15 milhões nos EUA, 6 milhões na Alemanha, 3 milhões na Grã-Bretanha; na Tchecoslováquia havia quase um milhão de desempregados numa população de 13 milhões de habitantes. A situação foi pior, embora na mensurável em cifras tão precisas, nos países menos conhecidos que viviam da exportação de matérias-primas, agora invendáveis.”
  • Houve um aumento da concentração da riqueza: “No fim do processo, oito grupos financeiros detinham 30% da renda nacional: a banca Morgan (que controlava General Electric, Pullman, US Steel, Continental Oil, ATT, etc.), Rockefeller (US$ 6,6 bilhões em ativos), Kuhn e Leeb (10,8 bilhões), Mellon (3,3 bilhões), Dupont de Nemours (2,6 bilhões). Constituíram-se também redes de acordos internacionais, espacialmente com empresas alemãs: Dupont de Nemours e IG Farben, General Electric com Siemens e Krupp, General Motors e Opel.” (Osvaldo Coggiola, “A crise de 1929 e a grande depressão da década de 30”)

Ainda não conhecemos plenamente a actual crise porque ainda a estamos a viver. Não a conhecemos tão bem quanto a crise de 1929/33 porque dessa já exploramos todas as consequências, já incidimos o crivo da racionalidade e o bisturi da análise sociológica e económica ao longo de décadas, mas é possível traçarmos em linhas gerais as grandes semelhanças e diferenças. Elas no ajudarão a compreender algumas vertentes que nos permitirão concluir sobre as ligações entre a actual crise de sobreprodução e a que então se viveu.

 

12. Entre as semelhanças salientemos as seguintes:

(A) Ambas são partes integrantes do ciclo de negócios, são crises de sobreprodução que se manifestam sob a forma de subconsumo. Dentro desta tipificação podemos dizer que são grandes crises, crises de grande intensidade de manifestação, com impactos sociais susceptíveis de gerar as mais profundas rupturas sociais. São crises de amplitude mundial que se revelam com grande sincronismo entre os países até então dominantes.

(B) Ambas se desencadeiam numa fase em que o capitalismo domina à escala mundial, em que as relações económicas e sociais são de tal forma intensas e frequentes que podemos falar num capitalismo mundial, o capitalismo já dominado por grandes empresas internacionais, as chamadas multinacionais. A exploração colonial de então expressa-se hoje sob a forma “neocolonial” (apesar das diferenças entre as duas situações as semelhanças são mais fortes) ou, por outras palavras, utilizando uma terminologia consagrada, estamos, então como hoje, na fase imperialista do capitalismo.

(C) Grande parte das formas de manifestação da crise é semelhante: diminuição do investimento privado, inversão do crescimento do produto nacional, desemprego em grande percentagem, falências, instabilidade bolsistas e violentas quedas de cotação. Enfim uma panóplia de situações a que já fizemos alusão.

Simultaneamente apresentam grandes diferenças:

(1) Os mercados financeiros não criam valor, transferem valor. A criação deste encontra-se, grosso modo nas actividades agrícolas e industriais. Os mercados financeiros podem ser importantes para as actividades produtivas mas serão tanto menos quanto o capital fictício assume uma importante parcela das actividades daqueles mercados. Quando da crise de 1929/33 a Inglaterra e os Estados Unidos da América, em plena ascensão mundial eram as economias mais poderosas tanto em termos produtivos como financeiros (em 1926/9 os EUA era responsável por 42,2% da produção mundial de produtos industrializados e o primeiro produtor mundial de carvão, electricidade e petróleo ao mesmo tempo que a bolsa de Nova Iorque assumia cada vez mais a hegemonia financeira mundial). Na actual crise os EUA dominam os mercados financeiros, continuam a ter uma importante base industrial mas há uma forte deslocação dessas actividades para outras economias, como a China. Há um hiato político-territorial entre o centro das actividades financeiras e os centros das actividades criadoras de valor. Este hiato tende a condicionar as possibilidades de recuperação da crise e tenderá a associar a saída da crise a uma reestruturação do poder económico mundial.

(2) Em parte pelas razões invocadas no ponto anterior, em parte por uma generalização da ideologia neoliberal, em parte, ainda, pelas novas formas adoptadas pelos EUA para manter o seu poder internacional (assente no capital financeiro e na capacidade militar) a economia mundial, muito particularmente as economias americana e europeia, dos últimos trinta anos tem assentado numa expansão exponencial dos mercados financeiros (monetário, de capitais, cambial; formais e informais), dos contratos a prazo (futuros, opções, swaps, warrants, certificados, produtos estruturados, Hedge Funds e tudo que a imaginação e os interesses do capital fictício o exijam), dos bancos, instituições financeiras e fundos de pensões. Uma financiarização não só desligada do processo produtivo como, em grande medida, contra ele. O capital especulativo, a quantidade de recursos absorvidos pelas transacções financeiras, o predomínio avassalador do curto prazo na lógica e dinâmica económicas foram factores que colocaram os mercados financeiros em conflito com as actividades produtivas. Acrescente-se que tudo isto associado à ideia da eternização desse processo conduziu a uma abundante criação legal favorável à redução das reservas bancárias (o que simultaneamente aumentava as suas capacidades de crédito) e à desregulação.

Por outras palavras, esta financiarização da economia apontava para a possibilidade de uma crise económica de maiores proporções e menores possibilidades de recuperação que na crise anterior. Esta tendência ainda foi reforçada pela política económica desencadeada quando dos primeiros sinais da crise: apoiar os bancos, alimentar os mercados financeiros, facilitar a vida aos principais agentes causadores da crise.

(3) O crescimento avassalador das actividades financeiras aqui referido foi sistemicamente acompanhado por um aumento da economia não-registada, frequentemente designada por economia paralela. Aumentam as actividades que visam a fuga aos compromissos fiscais (grandemente com o apoio dos próprios Estados que fomentaram a concorrência fiscal, a livre circulação do capital, a deslocalização industrial, as praças financeiras offshore), a economia ilegal (da escravatura ao tráfico de droga, do armamento ao lixo tóxico, das espécies em extinção aos órgãos humanos, etc.) e ainda a economia informal. A fraude entrelaça-se com esta tendência de aumento da economia paralela, a corrupção generaliza-se a assume formas mais sofisticadas, como a promiscuidade entre o económico e o político, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.). As máfias e o crime económico internacional organizado estão presentes por todo o lado. Estas são situações totalmente novas em relação à crise de 1929/33.

Por definição o aumento muito significativo da economia paralela reduz a eficácia das políticas económicas, reduz as possibilidades dos Estados desencadearem políticas económicas cíclicas, anti-crise e de recuperação, de promover um desenvolvimento económico assente na criação de valor.

(4) Há contudo uma diferença entre as duas crises que joga a favor da situação actual. Os Estados têm um passado de intervenção que lhes confere um maior peso na economia, apesar das teses liberais, antes, e neoliberais, depois. A integração económica, o maior entrelaçamento da economia e os actuais meios tecnológicos permitem conjugação de esforços à escala mundial e maior rapidez de actuação.

Mesmo nas semelhanças existem diferenças que não são nada despiciendas. Em ambas as situações há um domínio mundial do capitalismo. Contudo a crise de 1929/33 acontece com a experiência da Revolução Russa de 1917 ainda bem viva na memória de todos, num quadro social internacional de construção de um sistema social alternativo. A actual crise verifica-se após de um quarto de século de derrocada do conjunto de países constitutivos do “bloco soviético”, de convencimento de que a China optou definitivamente pelo capitalismo. Por outras palavras então o capitalismo estava ameaçado enquanto agora é o grande vencedor à escala mundial.

 

13. Perante a situação de crise, animados pelos apoios concedidos pelos Estados e pelas grandes quantidades de capital-dinheiro fora do controlo do Estado (offshores, economia paralela, branqueamento de capitais) o capital financeiros redescobriu novas formas de se reproduzir, de continuar a usufruir de lucros associados à especulação. Os mercados de futuros e as multinacionais permitiram alastrar a especulação a bens essenciais ao quotidiano das sociedades e das pessoas. Afectou os preços internacionais do petróleo e dos bens alimentares.

Os preços de muitos bens deixaram de ser o “ponto de encontro da oferta e da procura” e passaram a ser essencialmente o resultado do jogo monopolista através da intermediação dos mercados de futuros.

Isso já era muito claro quando dos primeiros aumentos brutais do preço do petróleo. Afirmava então (« O Financeiro contra o económico ». Shift #1, Maio 2008):

“Se as crises são períodos típicos de opção por bens que possam funcionar como reservas de valor, o sistemático aumento do preço do petróleo e os aumentos de alguns outros bens minerais e agrícolas, revelam uma situação nova. Os preços no consumidor final não são o resultado dos custos de produção e da oferta e da procura, mas da especulação:

«O movimento ascendente mais recente ocorreu em paralelo com uma queda pronunciada do valor do dólar americano e, consequentemente, com uma deslocação de muitos investidores para futuros contratos de crude. Trata-se de uma substituição básica dos activos em alta pelos que se encontram em declínio. Esta dinâmica influenciou significativamente o preço do petróleo no curto prazo e fez também aumentar os preços de outras mercadorias. (...) A OPEC aprecia a forma como os mercados financeiros funcionam, mas é importante ter atenção aos impactos sobre o mercado do petróleo deste género de especulação, na medida em que pode criar um clima de nervosismo e incerteza.» (OPEC, «Stability and volatility?», OPEC Bulletin 3-4/08)

O capital fictício continua a promover formas de auto-sustentação. Consegue transferir os impactos da especulação para o preço dos bens de consumos, canalizando rendimentos dos consumidores para os lucros de empresas e especuladores.”

Continua a ser assim hoje, como se relata em “Petrolíferas aproveitam a desgraça alheia”, publicado em Maio no Courrier:

  • “o essencial, o custo do barril das empresas reflecte os custos anteriores de perfuração e/ou de compra do crude, que quase sempre têm pouco ou nada a ver com o preço actual do crude”
  • “os verdadeiros – e talvez únicos – ganhadores são os especuladores financeiros, nos mercados de futuros, e as grandes empresas petrolíferas, que tiram partido do pânico generalizado para impor um aumento dos preços muito superior ao dos seus custos”.

 

14. A actual crise do euro e da União Europeia (é isso que está em causa e não os problemas financeiros grego, irlandês, português, espanhol, italiano, belga, etc., não as dificuldades de liquidez da grande maioria dos bancos, não o abrandamento do produto das economias dominantes como a alemã) é a conjugação de dois factores: (a) a expansão da especulação financeira às dívidas dos Estados e aos mercados cambiais; (b) uma série de erros na criação do euro.

Porque já anteriormente falámos do expansionismo do capital fictício e especulativo recordemos alguns aspectos da segunda vertente. Alertando para outros textos já depositados neste espaço, recorremos a mais um artigo do Courrier (“Euro: salve-se quem puder”) publicado em Junho:

  • “A crise da dívida na Europa pôs a nu todas as mentiras, todos os logros, vazios jurídicos, fissuras políticas e lacunas económicas que acompanharam a criação da moeda única. Uma das razões pelas quais os europeus ainda não consolidaram o euro é a sua incapacidade de avaliar a magnitude da má-fé que esteve presente na criação da moeda única”.
  • “a Zona Euro foi sempre vulnerável a uma crise financeira. Mas, levando a negação ao extremo, a Europa nunca criou um mecanismo de resolução de crises. (...) Foram as decisões políticas tomadas pelos dirigentes europeus que acabaram por pôr em perigo a solvência de alguns países. O erro mais grave cometido durante o processo de procura de solução para a crise foi a decisão tomada pelos líderes da Zona Euro, em outubro de 2008, após a falência do banco americano Lehman Brothers, de adoptar uma abordagem do tipo (...) cada um por si (...) em relação à crise do sistema bancário.”
  • “a Europa está atolada num problema clássico da ação colectiva: a defesa dos interesses nacionais impede uma solução comum”.

 

15. É neste contexto internacional e neste entendimento das crises e da crise de sobreprodução actual que podemos entender a “crise das dívidas soberanas”.

Contudo fica uma dúvida.

A maneira como a “crise do euro” tem sido “comandada pelos mercados” é de um rigor cirúrgico no aproveitamento dos elos mais fracos, do desnorteio das instituições, da articulação entre as situações europeias e internacional. A conjugação de esforços entre os “donos do mundo” (“mercados”, banca, ratings, etc.) também tem sido de um rigor militar.

Os “mercados” têm uma direcção estratégica e táctica?

Os “mercados” têm uma intelligentia?

Ele ou nós?

sociodialetica, 27.03.11

1. São conhecimentos antigos e frequentemente referidos: “Não se pode (duradoiramente) repartir o que não se produziu”; “Para garantir maior produção é fundamental o investimento (todo ele)”; “a moeda (equivalente geral) só existe porque há produção e troca de bens”.

Qualquer estudante de economia deve ter presente estes princípios básicos. Li-os pela primeira vez em Problemas Fundamentais de Economia, do saudoso Francisco Pereira de Moura, no início dos anos 60.

Bastaria ter estes aspectos em consideração para se saber que um projecto duradoiro de moeda única em diversos países, que abdicariam da sua moeda, logo de uma parte da sua soberania e da sua capacidade de regular a sociedade, passaria inevitavelmente por estratégias de aproximação produtiva entre regiões. Uma moeda única entre diversos países passaria por o que se costuma designar por “convergência real”.

Contudo, quando se começou a falar da criação da moeda única europeia os políticos, por ignorância, interesse ou soberba, afastaram a “convergência real” da agenda política. Foi substituída pela veleidade da “convergência nominal”: os países continuam com profundas desigualdades produtivas, competitivas, redistributivas, logo estratégicas, mas” acertariam o passo” em termos orçamentais, fiscais, de inflação.  Como se diria na gíria popular, constrói-se a casa a partir do telhado. Nem todos os países estariam nessa situação, porque a moeda única era feita à medida de alguns, mas estariam todos os que têm menores capacidades de produtividade e competitividade.

Produtividade e competitividade que podem melhorar com o voluntarismo, mas que essencialmente dependem da produção e de procedimentos formativos de longo prazo.

Teve-se a soberba de construir a moeda única de cima para baixo, sabendo desde sempre que a capacidade dos países para fazerem face, mesmo em conjunto, a eventuais especulações sobre as moedas seria pequena. Os especuladores internacionais eram mais poderosos. Sabia-se quando o projecto foi avançado, agravou-se quando foi concretizado, intoxicou-se com a actual crise.

 

2. Discutir hoje o euro deveria ter em conta tudo isto e reconhecer os erros cometidos. É preciso salvar o euro? Não tenho nada contra, antes pelo contrário. Mas a prioridade é sabermos como salvar os cidadãos dos países da moeda única, todos e cada um deles. Salvemos o euro só e apenas só se isso for compatível com salvarmos as populações e as nações.

Se tal é possível, só será concretizável com uma estratégia de longo prazo, obviamente atenta ao presente, mas não hipotecada a ele. Que os políticos, os domínios e as subordinações não gerem novas fugas em frente.

Não gerarão mesmo?!