No céu de Nova Iorque: Um lenço? Um pássaro?
...te sentirás acorralada
te sentirás perdida o sola
tal vez querrás no haber nacido
Conta-me a Luísa Felix que numa janela das torres gémeas havia alguém que acenava desesperadamente um lenço branco. Provavelmente, lá, daquela altura desconforme, acompanhava o aceno com um pedido muito simples “tirem-me daqui”, daqui, deste centésimo andar coroado de fogo, longe dos homens e mais longe ainda da mão de Deus.
Pouco a pouco, continua a Luísa, os acenos foram sendo menos fortes, mais calmos quase, mais cansados de certeza. Até que chegou um momento em que cessaram de todo e o lenço soltou-se da mão e, serenamente, lentamente, veio por aí fora, caindo desse andar esquecido pela piedade. Com uma graça leve, revoluteava sustido pela brisa do Hudson ali tão perto e quem o viu pairar entre as ruas Vesey e Murray pensou numa pomba perdida ou numa gaivota aturdida pelas sirenes dos bombeiros, pelo crepitar das chamas, pelos gritos da rua.
E, ao contar-me isto, o rosto da Luísa era uma pedra dividida ao meio pelo parco sol outoniço que, pela esquerda, vinha da janela do café onde num domingo, onze dias depois, nos encontrámos. O João Félix enterrava os olhos e o bigode numa xícara de café e eu tentava suster pela enésima vez uma lágrima teimosa e quente.
Tínhamos os três estado em Nova Iorque e, por várias vezes, comentado as respectivas viagens, juráramos regressar a uma terra que o nosso comum amor ao cinema e ao jazz tornara também nossa. Até já conhecíamos três ou quatro sítios em “downtown” onde se podia tomar um café verdadeiro, dos nossos, mais espuma que líquido, enfim, uma bica, um cimbalino como por cá se diz. E havia, depois, um rosário de recomendações que iam desde o hotel, barato e bom, até ao pequeno restaurante italiano no village que, segundo a Laurinda Simas, servia a melhor “Sachertorte” a oeste de Viena (de Áustria!).
Há muitos, muitos anos, quarenta provavelmente, um amigo trouxe de França uma edição “poche” de “Paroles” de Prévert. E o primeiro poema que nos leu, numa tarde de praia e vento na figueira, foi o “Barbara” que tem esse verso único e terrível “quelle conerie la guerre”. E, entre todos nós, em idade de carne para canhão, nesse ano difícil de mil novecentos e cinquenta e nove, ressoou longamente a litania “rappelle toi Barbara”, que foi responsável por termos acabado um pouco mais cedo a nossa adolescência. Dois anos depois, a “conerie” instalava-se e ameaçava-nos a todos. Alguns morreram numa terra africana tão desconhecida como inútil e os que ficaram recordam-nos, aliviados e envergonhados por estarem vivos.
São estes mortos que agora nos vêm bater à porta de mistura com outros, muitos outros, desde uma basca chamada Yoyes até um menino palestino agarrado a um pai desesperado que, coincidência fatal, pede a paz e a vida por um telemóvel igual aos que se usaram nas torres. E tão inútil como esses...
Ainda ninguém sabe porque se atacaram as torres, ou melhor, ninguém consegue perceber o efeito útil do ataque. Milhares de mortos, de sessenta e tal nacionalidades, o dobro dos órfãos, provam o quê? Que a America também se abate? Para isso bastava uma bomba na estátua da Liberdade! Para extirpar o grande Satã das terras santas de Meca e Medina? Deixem de usar dólares! Para vingar os mortos da Intifada? Parem um só dia a retaliação! Ou matem os matadores!
Os mortos das torres nem sequer representavam o capitalismo triunfante ou a desregulação dos mercados e a exploração desenfreada dos recursos do planeta. Na esmagadora maioria, e logo pela manhã, nas torres só estavam empregados subalternos das empresas aí instaladas. E ascensoristas, mulheres da limpeza, contínuos. E turistas ansiosos por ver a cidade desde aquela imensa altura. Não morreu um único capitão da indústria, um banqueiro, sequer um guru das novas tecnologias. O capitalismo continua intacto, eventualmente mais forte. Em contrapartida, a nossa liberdade vai ser reduzida, os nossos passos e as nossas opiniões vão ser mais seguidos. Virá o tempo em que analistas de olhos frios perscrutarão as intenções mais subtis deste papel que enfim consigo escrever e poderão ver nele uma ameaça ao sistema, um recado de Alá, de Yhavé ou de uma qualquer outra divindade vingativamente justiceira.
Paralelamente há-de haver por aí um compagnon de route dos deserdados e oprimidos que censurará em nome da história e dos amanhãs radiosos, este degenerado que se comove com a morte dos ricos em vez de perpetuamente chorar o destino dos pobres. E explicará, uma mão num Evangelho apócrifo e nobelizável, e outra a tapar as fossas comuns dos gulags, dos laggers, do primeiro, segundo e terceiro mundos, as raízes deste gesto vil mas compreensível à luz dos olhos cegos dos autoproclamados defensores da nova ordem internacional.
Perdoname
No sé decir nada más
pero tu comprende
que aun estoy en el camino...
José Agustin Goytisolo
(este texto, escrito em fins de setembro de 2001, foi oferecido à Luísa e ao João Félix – oferta que se mantém, claro – e, cinco anos mais tarde, em Setembro de 2006, foi publicado no blog na série au bonheur... onde tem o número 30. Entendi voltar a ele porque a indignação e a dor e a estupefacção continuam a ser as mesmas desse dia longínquo. E porque é preciso lembrar uma infâmia que nada, absolutamente nada, desculpa. E prevenir um certo pensamento “revisionista” que tenta começar a dar uma “explicação” exculpatória a este inqualificável acto.)