farmácia de serviço 53
E o Natal à porta
Já sei, caras leitoras e conspícuos cavalheiros, que se dão ao trabalho de me ler que falar de Natal nos escuros tempos em que estamos perdidos parece blasfémia. E, de certo modo, é-o. O pais está como está (por culpa do divino Espírito Santo, da Bruxa má, do azar, da estrela Sírius ou de qualquer outra coisa que nada tem a ver com o indigenato local ((está bem assim caro confrade JCP?)) e nós nação valente e imortal que choramos e gememos neste vale de lágrimas sem culpa mas com desculpa, e vem um abencerragem falar de Natal?
Eu explico-me: fui hoje arrastado para o Corte Inglês (ontem tinha estado num outro centro comercial) à procura ainda não percebi bem de quê, e dei (como ontem também) com multidões desvairadas carregadas de embrulhos, fazendo bichas tremendas nas caixas e nos terminais multibanco.
“Was ist das?”, inquiri, pensando estar em Colónia ou Dusseldorf.
“Olha pró totó! Está parvo ou faz-se?”
Regressado de modo tão brusco ao torrãozinho de açúcar, dei por mim a pensar que maugrado as previsões sombrias dos comerciantes, a coisa ainda permite uma que outra compra.
E vai daí, resolvi falar em três ou quatro bugigangas vagamente culturais para pôr no sapatinho dos conterrâneos. Por exemplo: livros.
Ora bem comecemos pelo novo, novíssimo livro do Manuel António Pina, de que já várias vezes aqui se disse todo o bem. Pina acaba de lançar “como se desenha uma casa” (Assírio & Alvim) poesia vertiginosa e belíssima. No caso de preferirem prosa anda por aí mas a sessentinhas um “Dicionário Camões” (Caminho), mil páginas de grande saber camoniano. Este dicionário aparece na sequencia de outros igualmente excelentes sobre Eça, Pessoa ou Camilo para só referiri os que tratam de escritores. Na História saiu também há pouco um livro a todos os títulos notável pela minúcia beneditina do seu autor, um jovem doutor (por extenso) Miguel Cardina: “Margem de certa maneira, o maoísmo em Portugal 1964-1974”. Bem documentado e cheio de surpresas para muitos leitores. Adivinhem quem era “mao” nos anos duros! Juntemos-lhe uma biografia explosiva: “Puta que os pariu (a biografia de Luís Pacheco)” de João Pedro George (Tinta da China, como o anterior livro citado). E mais um livro de História desta feita da 1ª República: “Primeira República: Como cai um regime” de António José Telo é o segundo volume de uma história da República que começou a sair no ano passado e acaba por parecer ser uma reedição muito modificada de “Decadência e queda da República Portuguesa” (2 volumes também publicados pela saudosa “A Regra do Jogo” nos anos de 78 e 80 do século passado. Mesmo tendo estes últimos volumes ler os mais recentes é extremamente útil e entusiasmante. E sempre sai da beatitude hagiográfica de certas publicações recentemente vindas a lume sobre temas conexos.
Vi por aí uma nova edição de “V” de Thomas Pynchon, autor que muito prezo. Não sei mais nada porquanto o meu exemplar é de 1989 e, na altura, não me pareceu má tradução.
Leitores mais abonados poderão voar mais alto. Por exemplo o fabuloso catálogo “Casanova la passion pour la liberté” exposição organizada na Biblioteca Nacional de França sobre o cavalheiro em epígrafe celebrando a compra do manuscrito integral de “Histoire de ma vie” (49 eurinhos mais despesas de transporte). Também franciu e de alta voltagem, dois Stendhal fabulosos: “Promenades dans Rome” e “Rome Naples et Florence”, dois livros de viagens editados na “la petite collection” da editora Dianne de Selliers e profusamente ilustrados (mais de 300 obras nos dois volumes) por pintores do romantismo ou anteriores e que terão sido vistos e apreciados por Stendhal (60 e 50 euros). Mais baratinho: “baltiques (oeuvres completes 1954-2004)” do recentíssimo prémio Nobel de Literatura, Tomas Tranströmer (Gallimard col Poesie, €8,55).
Fechemos esta excursão com um dvd e alguns cds. O dvd é obviamente “Sentimento” de Visconti, um dos indiscutíveis dez melhores filmes de sempre, doa isto a quem doer que eu não arredo pé. Acaba de ser lançado numa versão cuidada e temo bem que se esgote.
De música só coisas baratas. Só, é como quem diz. Não posso deixar de referir o lançamento de uma integral de Liszt (Brilliant Classics) que ronda os 180 euros. Também é verdade que são 99 discos! Pessoalmente vou aguardar pelos saldos.
E já que se fala de saldos, relembram-se os mais relapsos, que na FNAC aindda andam á venda os cinco volumes da monumental “The encyclopedia of jazz”, cinco caixotões (Classic jazz, swing time, big bands, bebop story e modern jazz) a cem discos cada! Cem discos! Ora acontece que por misteriosas razões cada um desses caixotes que se podem comprar separadamente começou por custar 150 euros e agora vendem-se a 19 virgula qualquer coisa. Cem discos por vinte euros? Nem mais, malta gulosa. Fica a vinte cêntimos o disco! A quarenta paus dos de antigamente!
E garanto que os discos são genericamente bons e óptimos para quem tem uma pequena ou muito pequena discoteca. O problema, se problema é, é ouvi-los que aquilo demora o seu tempo.
Depois desta cabazada apenas vou referir “Peggy Lee. Greatest hits” um duplo a rastos de barato como os seguintes. A loira Peggy cantava bem, muito bem, mesmo se sofreu do preconceito racial. Era branca e alguns puristas burros e duros de ouvido achavam que o jazz só tinha uma cor, a preta. Abençoada estupidez! Oiçam a Lee e depois digam-me. E já que estamos com a mão na massa: uma negra. Retinta. Pianista e cantora de mão cheia: “Nina Simone: my baby just cares for me (que junta little girl blues e amazing NS” imparável. Por acaso este disco vai para um leitor e amigo a quem redesejo um bom natal. A prendinha cá está à sua espera. “John Coltrane: Blue Train”(reunião de dois clássicos, o que dá título à edição e “traneing in” Com uma equipa de luxo: Lee Morgan trompete, Curtis Fuller trombone, Paul Chambers no contrabaixo Kenny Drew no piano e Philly Joe Jones na bateria. Um banquete! “Blind man blues. Blues from within” outro duplo que junta um conjunto de grandes bluesmen cegos para tudo menos para o esplendor da grande música. E para finalizar um disco para tornar o João Vasconcelos Costa verde de inveja “Pete Seeger, american industrial ballads” outro duplo que junta ao disco que dá o título um outro (american favorite ballads). Os velhadas do nosso tempo, João, adorarão estas 42 canções. E o resto da malta também, aventuro eu.
Como de costume, a escolha foi feita partindo de coisas lidas e ouvidas. Aqui não se engana ninguém, não se faz publicidade nem se anda ao ritmo da moda. E é por isso que, mesmo a fechar, se propõe ainda uma visita a Serralves à exposição “outra vez não Eduardo Batarda” e a reedição de por este rio acima do Fausto. Boa pintura e boa música. E de portugueses. De cá. Resistentes. Competentes. Inteligentes. Sempre dá para variar da mediocridade política actual e passada.
Bom natal, se puderem.
*(alguns leitores anotarão que não disse mal de nenhum político presente ou passado, pelo menos nomeando-o)
**a gravura pertence a uma maravilhosa Mariana que não conheço e que pilhei por aí. Beijinhos, Marianinha, bom Natal e bom ano para ti e para os teus pais e restante família. quem desenha assim merece ir ver o Batarda.