liberdade vigiada 150
Liberdade vigiada 150
Peixe de águas profundas
mcr, 29 de Setembro
Há muitos, muitos, anos, Mário Soares qualificou assim Jaime Gama, uma esperança socialista que se retirou da vida política há dez anos. Gama foi quase tudo o que podia ser desde fundador do PS, dirigente estudantil, ministro e presidente da Assembleia da República. Recusou ser candidato a Presidente da República afirmando na altura que apenas desejava ser motorista dos seus seis netos.
Dotado de uma notável inteligência e de um raro sentido político, Gama deixou um futuro político em 2011. Era o principal representante da chamada “direita” do PS mas se formos analisar bem algumas das suas posições deixa muito pseudo esquerdista socialista à distância.
Socorro-me da expressão cunhada por Soares para, desta feita, me referir ao vice almirante Gouveia e Melo que deu pntem por terminada as suas funções. Terminada e bem terminada, Gouveia e Melo pegou numa esfarrapada, desorientada e pouco credível organização, imprimiu-lhe regras precisas, sentido ético, profissionalismo e vontade de servir. O pequeno grupo de militares dos três ramos das forças armadas que com ele trabalhou mostrou ser uma formidável máquina, eficiente, capaz, rápida e exemplarmente modesta.
Ontem, vimo-los na televisão há sem camuflado, com as suas fardas melhores e claramente apostados em voltar aos seus quartéis.
Saem da vida pública como vencedores. Saem pela porta grande, dando um especial brilho à classe militar nacional e um exemplo que conviria guardar. Espero que os condecorem como merecem. Foram brilhantes e eficazes. Honraram o país e impuseram-se no estrangeiro. É verdade que é o vice almirante que aparece nas capas das grandes publicações internacionais mas ele, também o símbolo desse punhado de especialistas militares que provam à evidência a qualidade dos militares portugueses. E talvez haja agora quem perceba a necessidade de dotar as FA dos meios necessários para a prossecução de tarefas vitais para o país.
Gouveia e Melo, submarinista, é até por isso um “peixe da águas profundas” no exacto sentido que Soares, um político de rara clarividência, lhe deu.
Não sou mais do que um modestíssimo paisano que atravessou os anos terríveis sem ir `tropa graças ao facto de ter ido às sortes alguns meses antes da eclosão da guerra de África. Nunca ninguém terá pago a “taxa militar” com tão boa vontade quanto eu. Enquanto a pudesse pagar era sinal que a minha vida civil continuaria tal e qual.
Vivi em meio militar entre 1954 e 1957 pois o meu pai, médico foi durante esses anos capitão médico em Moçambique (depois passou à peluda mas manteve sempre fortes amizades no meio militar, sobretudo graças ao bridge- é sabido que os oficiais do activo eram ou ainda são fanáticos deste jogo. Foi o pater famílias e com muitos deles que aprendi a jogar e ainda os relembro com saudade.
Tive ocasião, nessa época, de conhecer a chamada “grandeur et servitude” da vida militar. Provavelmente tive a sorte de apenas conhecer os melhores, os mais devotados, os que aguentaram anos e anos de comissões no “mato”, na Índia, e recordo que foram alguns deles que convenceram o meu pai a vir embora de Moçambique ainda em princípios de 1973. “Isto não tem hipótese” disseram-lhe e ele a contragosto (adorava África, o mato, a caça grossa) fez as malas e retirou-se para uma “metrópole” donde saíra quase vinte anos antes. E lá ficaram as economias de uma vida, como aliás sucedeu a tantos outros.
Até nisso, o Estado português, provou não ser pessoa de bem. As dificuldades impostas na transferência de fundos da colónia/”província ultramarina” para a “metrópole foram tais que alguém como o meu pai, mais ingénuo do que devia, ficou a ver navios. Muita gente aceitava dar 1oo por 80, comprar casas cá estando lá, carros, comprar ouro. O pater achava isso indigno e jurava que o Estado era uma pessoa de bem! Não era. Não foi e é duvidoso que alguma vez o venha a ser.
Dessa época da minha vida de adolescente, ficaram-me memórias inesquecíveis dos trópicos, dos negros que conheci e um intenso desejo de estudar tudo o que era possível sobre África. Estão por aqui uns milhares de livros sobre África, sobre a colonização portuguesa,, sobre a etnografia e antropologia africanas. E sobre a espantosa arte negra, um termo ue esconde uma profusão de culturas e de conceitos diversos e extraordinários.
Tudo isso o devo, em parte, às pessoas que conheci, entre elas muitos militares, alguns dos quais deixaram excelentes monografias sobre os povos que conheceram.
Agora, tantos anos depois, quase uma vida, vejo que o vice almirante Gouveia e Melo, nado e criado em Quelimane, faz parte dessas experiencias africanas e honra sobremaneira a profissão que escolheu. Estou-lhe grato e quero disso deixar aqui este testemunho.
*na vinheta: o primeiro (e melhor!) submarino da minha vida: o Nautilus do capitõ Nemo. Julio Verne dedicou-lhe os três volumes ds "20.000 léguas submarinas" e volta a fazê-lo aparecer no 3º volume da "Ilha Misteriosa".. Oh, anos de intensa felicidade leitora! E mais uma vez uma terna lembrança do pai que foi também ele, pela mão do avô Alcino, um leitor atento do grane francês. Acho que o vice lmirante não se sentirá mal em tão brilhante companhia.