Maio, maduro Maio 6
d'oliveira, 11.06.08

... Fomos testemunhas duma época
Em que daqui a cem anos ninguém acreditará
Nessa altura será compreendida a revolução nosso túmulo
E os que manipulavam o rádio
Vitezlav Nezval
(em memória de V. I. Lenin, “Pantomina”, 1924 – recolhido em Prague aux doigts de pluie, Éditeurs Francais Reunis, Paris, 1960)
Os leitores perdoarão a pequena ironia da citação que abre este texto sobre 1968 nos países do “outro lado”.
Convenhamos que, agora, é difícil compreender o panorama político e social da Polónia, da Checoslováquia e da Jugoslávia nesse longínquo ano de 68. Aliás juntar três realidades tão diferentes é um risco que se assume mas que se espera justificar. Pretende-se apenas mostrar como é que um regime mais ou menos idêntico em três países responde a reclamações que de início eram extremamente moderadas e não o punham em causa.
Comecemos pelo caso polaco.
Tudo começou pela proibição da peça “Os antepassados” de Mickiewicz, autor do século XIX, cuja peça é um manifesto contra a política czarista, numa época em que a Polónia estava ocupada pela Rússia.
A época não estava para zurzir no grande irmão mesmo que os odiados czares já só fossem passado. E não estava porque, no caso em apreço, a Polónia era governada por Gomulka, um comunista discretamente anti-russo mas suficientemente cauteloso para não permitir que no seu país se instalasse uma desordem idêntica á que grassava na vizinha Checoslováquia.
Depois, assistia-se, nos circuitos internos da inteligentsia polaca a uma ofensiva “anti-burocrática” de que a “Carta ao Partido Operário Unificado Polaco” de Kuron e Modzelewski era o mais recente exemplo.
Em termos muito gerais, a batalha que se travava nas universidades polacas tinha muito a ver com a liberdade de expressão que, estranhamente tinha feito uma breve aparição na Polónia na sequência da contestação de Bierut e na ascenção de Gomulka. Jornais tinham aparecido (por todos Po Prostu) grupos de discussão e os famosos “Conselhos Operários”. Todavia, logo que a nova situação se estabilizou, as coisas voltaram ao ritmo anterior. Po Prostu foi silenciado, os conselhos foram descritos como um desvio anarquizante e as centenas de militantes que se tinham revelado começaram a ir para a prisão.
A elaboração do manifesto de Kuron e Modzelewski, resultado iasás de múltiplas contribuições e reuniões, respondia a esse ataque ás liberdades um tempo reencontradas.
A peça de Mickiewicz, apareceu no momento errado e sobretudo a sua estreia ocorria durante o desenvolvimento do processo checo. Se se acrescentar que o ambiente económico era pouco entusiasmante, logo se percebe que estavam reunidas as condições para uma explosão universitária que para ter êxito precisaria de apoio nos meios sindicais e nas fábricas.
Algumas greves esporádicas terão entusiasmado os estudantes que ocuparam algumas universidades e saíram para a rua. Mas os operários ficaram quietos e o fogo que ameaçava consumir a nação polaca foi apagado como fogo de palha que ao fim e ao cabo foi. Em Maio o movimento estava extinto. Gomulka poderia continuar a governar reprimindo aqui, diminuindo a pressão acolá. Durou mais vinte anos.
Na Jugoslávia, país tecnicamente não enfeudado a Moscovo, com liberdades inimagináveis para os habitantes do bloco de leste (liberdade de emigrar, de viajar, de criar empresas privadas etc..., o movimento tem origem num facto sem qualquer importância: uma rixa entre estudantes e uma brigada empenhada numa “acção de trabalho”.
A milícia intervém e os estudantes apanham pela medida grande. No dia seguinte são milhares a desfilar desde a cidade universitária nos arrabaldes até ao centro de Belgrado. Nova intervenção da milícia e novos combates de rua.
A greve universitária é proclamada, as faculdades são ocupadas e o já clássico Maio repete-se aqui em Junho.
A imprensa apodera-se do assunto. Os estudantes barricados sobem o tom das suas criticas. Não é só a intervenção da milícia que é criticada mas também as insuficiências do ensino, a falta de saídas profissionais para os licenciados, a “burguesia vermelha” de Belgrado e a falta de solidariedade internacional com os Vietnam e a revolução mundial.
Do lado do poder as acusações também não faltam: partidários de Djilas, saudosos do antigo regime monárquico, trotskistas ou, inimigos da Federação!, isto é nacionalistas pequeno-burgueses.
Finalmente, quando se pensaria que a situação atingia o paroxismo e que se assistiria a uma repressão selvagem, Tito, chefe indiscutível, que forjara o seu poder na resistência aos invasores alemães e na oposição à União Soviética, intervém e salomonicamente declara encerrado o conflito: a maioria dos estudantes é sã e tem razão. A culpa dos acontecimentos é toda de uma ínfima franja de anarquistas, da falta de cuidado da polícia e da situação internacional.
A intervenção dos “irmãos de armas” comunistas na Checoslováquia e a brutalidade com que é feita perante um vago e comedido protesto ocidental, convencem estudantes contestatários e autoridades diversas a esquecer afrontas antigas e fingir que tudo vai pela melhor no melhor dos mundos. Não ia, como já Voltaire provara dois séculos antes.
E agora, a excepção: Excepção porque no caso checo não se trata de uma revolta juvenil com maior ou menor ressonância na população. Não está em causa a oposição aberta ao regime mas algo mais profundo mesmo que isso nos pareça ridículo. É de independência nacional que se fala. De facto a queda de Novotny e a relativamente longa experiência de gestão de Dubcec como dirigente comunista, não faziam prever á partida nada mais do que uma mudança de equipa forçada pelas circunstâncias.
Nunca saberemos como é que um comunista eslovaco, educado na URSS, ex-resistente e homem do aparelho chegou á conclusão que era preciso temperar o vinho velho do comunismo em uso no leste. Levar a destalinização um pouco mais longe. Bastante mais longe, se entendermos por isso pedir a intervenção das massas na condução dos negócios públicos. E permitir o escrutínio de toda a actividade do Partido pelo povo, a todo o momento. E acabar com a censura. Ou seja permitir uma informação livre, heresia absoluta num sistema que fazia do controle da informação a pedra chave da luta pelo socialismo. A segunda pedra dessa “revolução” seria, deveria ser, teria de ser, a partilha do poder entre o Partido Comunista e outras organizações.
E era disso que se tratava. A primavera desagua no verão como se sabe, e as medidas tomadas por Dubcek, a pressão da rua, a mobilização da sociedade civil, a calma severa com que tudo se passava, faziam as autoridades dos países irmãos temer pelo pior. E provavelmente seria o pior que viria. Na óptica deles, claro.
Dubceb e Svoboda por seu turno acreditavam numa evolução pacífica do regime, numa adaptação dele que não pusesse em causa a direcção do PC. E essa é uma das ironias desta história trágica. Eles eram os únicos que acreditavam numa saída pacífica para a crise. Soviéticos, polacos, húngaros, alemães e búlgaros, estão convictos do contrario. E desta vez não deixarão os camaradas soviéticos sozinhos como em 56 na Hungria. O pacto de Varsóvia que nunca serviu para atacar o inimigo ocidental teve esta única e irrepetível aplicação prática: atacou o país que pretendia ensaiar um novo modelo de socialismo e de passo perpetuar um sistema em que os seus dirigentes, ingenuamente, acreditavam. Depois disso, ser comunista no ocidente foi, digamos, muito mais difícil. Para muitos militantes de esquerda foi mesmo impossível. Por uma questão de honra, de ética e de fé no socialismo.
Em que daqui a cem anos ninguém acreditará
Nessa altura será compreendida a revolução nosso túmulo
E os que manipulavam o rádio
Vitezlav Nezval
(em memória de V. I. Lenin, “Pantomina”, 1924 – recolhido em Prague aux doigts de pluie, Éditeurs Francais Reunis, Paris, 1960)
Os leitores perdoarão a pequena ironia da citação que abre este texto sobre 1968 nos países do “outro lado”.
Convenhamos que, agora, é difícil compreender o panorama político e social da Polónia, da Checoslováquia e da Jugoslávia nesse longínquo ano de 68. Aliás juntar três realidades tão diferentes é um risco que se assume mas que se espera justificar. Pretende-se apenas mostrar como é que um regime mais ou menos idêntico em três países responde a reclamações que de início eram extremamente moderadas e não o punham em causa.
Comecemos pelo caso polaco.
Tudo começou pela proibição da peça “Os antepassados” de Mickiewicz, autor do século XIX, cuja peça é um manifesto contra a política czarista, numa época em que a Polónia estava ocupada pela Rússia.
A época não estava para zurzir no grande irmão mesmo que os odiados czares já só fossem passado. E não estava porque, no caso em apreço, a Polónia era governada por Gomulka, um comunista discretamente anti-russo mas suficientemente cauteloso para não permitir que no seu país se instalasse uma desordem idêntica á que grassava na vizinha Checoslováquia.
Depois, assistia-se, nos circuitos internos da inteligentsia polaca a uma ofensiva “anti-burocrática” de que a “Carta ao Partido Operário Unificado Polaco” de Kuron e Modzelewski era o mais recente exemplo.
Em termos muito gerais, a batalha que se travava nas universidades polacas tinha muito a ver com a liberdade de expressão que, estranhamente tinha feito uma breve aparição na Polónia na sequência da contestação de Bierut e na ascenção de Gomulka. Jornais tinham aparecido (por todos Po Prostu) grupos de discussão e os famosos “Conselhos Operários”. Todavia, logo que a nova situação se estabilizou, as coisas voltaram ao ritmo anterior. Po Prostu foi silenciado, os conselhos foram descritos como um desvio anarquizante e as centenas de militantes que se tinham revelado começaram a ir para a prisão.
A elaboração do manifesto de Kuron e Modzelewski, resultado iasás de múltiplas contribuições e reuniões, respondia a esse ataque ás liberdades um tempo reencontradas.
A peça de Mickiewicz, apareceu no momento errado e sobretudo a sua estreia ocorria durante o desenvolvimento do processo checo. Se se acrescentar que o ambiente económico era pouco entusiasmante, logo se percebe que estavam reunidas as condições para uma explosão universitária que para ter êxito precisaria de apoio nos meios sindicais e nas fábricas.
Algumas greves esporádicas terão entusiasmado os estudantes que ocuparam algumas universidades e saíram para a rua. Mas os operários ficaram quietos e o fogo que ameaçava consumir a nação polaca foi apagado como fogo de palha que ao fim e ao cabo foi. Em Maio o movimento estava extinto. Gomulka poderia continuar a governar reprimindo aqui, diminuindo a pressão acolá. Durou mais vinte anos.
Na Jugoslávia, país tecnicamente não enfeudado a Moscovo, com liberdades inimagináveis para os habitantes do bloco de leste (liberdade de emigrar, de viajar, de criar empresas privadas etc..., o movimento tem origem num facto sem qualquer importância: uma rixa entre estudantes e uma brigada empenhada numa “acção de trabalho”.
A milícia intervém e os estudantes apanham pela medida grande. No dia seguinte são milhares a desfilar desde a cidade universitária nos arrabaldes até ao centro de Belgrado. Nova intervenção da milícia e novos combates de rua.
A greve universitária é proclamada, as faculdades são ocupadas e o já clássico Maio repete-se aqui em Junho.
A imprensa apodera-se do assunto. Os estudantes barricados sobem o tom das suas criticas. Não é só a intervenção da milícia que é criticada mas também as insuficiências do ensino, a falta de saídas profissionais para os licenciados, a “burguesia vermelha” de Belgrado e a falta de solidariedade internacional com os Vietnam e a revolução mundial.
Do lado do poder as acusações também não faltam: partidários de Djilas, saudosos do antigo regime monárquico, trotskistas ou, inimigos da Federação!, isto é nacionalistas pequeno-burgueses.
Finalmente, quando se pensaria que a situação atingia o paroxismo e que se assistiria a uma repressão selvagem, Tito, chefe indiscutível, que forjara o seu poder na resistência aos invasores alemães e na oposição à União Soviética, intervém e salomonicamente declara encerrado o conflito: a maioria dos estudantes é sã e tem razão. A culpa dos acontecimentos é toda de uma ínfima franja de anarquistas, da falta de cuidado da polícia e da situação internacional.
A intervenção dos “irmãos de armas” comunistas na Checoslováquia e a brutalidade com que é feita perante um vago e comedido protesto ocidental, convencem estudantes contestatários e autoridades diversas a esquecer afrontas antigas e fingir que tudo vai pela melhor no melhor dos mundos. Não ia, como já Voltaire provara dois séculos antes.
E agora, a excepção: Excepção porque no caso checo não se trata de uma revolta juvenil com maior ou menor ressonância na população. Não está em causa a oposição aberta ao regime mas algo mais profundo mesmo que isso nos pareça ridículo. É de independência nacional que se fala. De facto a queda de Novotny e a relativamente longa experiência de gestão de Dubcec como dirigente comunista, não faziam prever á partida nada mais do que uma mudança de equipa forçada pelas circunstâncias.
Nunca saberemos como é que um comunista eslovaco, educado na URSS, ex-resistente e homem do aparelho chegou á conclusão que era preciso temperar o vinho velho do comunismo em uso no leste. Levar a destalinização um pouco mais longe. Bastante mais longe, se entendermos por isso pedir a intervenção das massas na condução dos negócios públicos. E permitir o escrutínio de toda a actividade do Partido pelo povo, a todo o momento. E acabar com a censura. Ou seja permitir uma informação livre, heresia absoluta num sistema que fazia do controle da informação a pedra chave da luta pelo socialismo. A segunda pedra dessa “revolução” seria, deveria ser, teria de ser, a partilha do poder entre o Partido Comunista e outras organizações.
E era disso que se tratava. A primavera desagua no verão como se sabe, e as medidas tomadas por Dubcek, a pressão da rua, a mobilização da sociedade civil, a calma severa com que tudo se passava, faziam as autoridades dos países irmãos temer pelo pior. E provavelmente seria o pior que viria. Na óptica deles, claro.
Dubceb e Svoboda por seu turno acreditavam numa evolução pacífica do regime, numa adaptação dele que não pusesse em causa a direcção do PC. E essa é uma das ironias desta história trágica. Eles eram os únicos que acreditavam numa saída pacífica para a crise. Soviéticos, polacos, húngaros, alemães e búlgaros, estão convictos do contrario. E desta vez não deixarão os camaradas soviéticos sozinhos como em 56 na Hungria. O pacto de Varsóvia que nunca serviu para atacar o inimigo ocidental teve esta única e irrepetível aplicação prática: atacou o país que pretendia ensaiar um novo modelo de socialismo e de passo perpetuar um sistema em que os seus dirigentes, ingenuamente, acreditavam. Depois disso, ser comunista no ocidente foi, digamos, muito mais difícil. Para muitos militantes de esquerda foi mesmo impossível. Por uma questão de honra, de ética e de fé no socialismo.