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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Maio, maduro Maio 6

d'oliveira, 11.06.08

... Fomos testemunhas duma época
Em que daqui a cem anos ninguém acreditará
Nessa altura será compreendida a revolução nosso túmulo
E os que manipulavam o rádio

Vitezlav Nezval
(em memória de V. I. Lenin, “Pantomina”, 1924 – recolhido em Prague aux doigts de pluie, Éditeurs Francais Reunis, Paris, 1960)

Os leitores perdoarão a pequena ironia da citação que abre este texto sobre 1968 nos países do “outro lado”.
Convenhamos que, agora, é difícil compreender o panorama político e social da Polónia, da Checoslováquia e da Jugoslávia nesse longínquo ano de 68. Aliás juntar três realidades tão diferentes é um risco que se assume mas que se espera justificar. Pretende-se apenas mostrar como é que um regime mais ou menos idêntico em três países responde a reclamações que de início eram extremamente moderadas e não o punham em causa.
Comecemos pelo caso polaco.
Tudo começou pela proibição da peça “Os antepassados” de Mickiewicz, autor do século XIX, cuja peça é um manifesto contra a política czarista, numa época em que a Polónia estava ocupada pela Rússia.
A época não estava para zurzir no grande irmão mesmo que os odiados czares já só fossem passado. E não estava porque, no caso em apreço, a Polónia era governada por Gomulka, um comunista discretamente anti-russo mas suficientemente cauteloso para não permitir que no seu país se instalasse uma desordem idêntica á que grassava na vizinha Checoslováquia.
Depois, assistia-se, nos circuitos internos da inteligentsia polaca a uma ofensiva “anti-burocrática” de que a “Carta ao Partido Operário Unificado Polaco” de Kuron e Modzelewski era o mais recente exemplo.
Em termos muito gerais, a batalha que se travava nas universidades polacas tinha muito a ver com a liberdade de expressão que, estranhamente tinha feito uma breve aparição na Polónia na sequência da contestação de Bierut e na ascenção de Gomulka. Jornais tinham aparecido (por todos Po Prostu) grupos de discussão e os famosos “Conselhos Operários”. Todavia, logo que a nova situação se estabilizou, as coisas voltaram ao ritmo anterior. Po Prostu foi silenciado, os conselhos foram descritos como um desvio anarquizante e as centenas de militantes que se tinham revelado começaram a ir para a prisão.
A elaboração do manifesto de Kuron e Modzelewski, resultado iasás de múltiplas contribuições e reuniões, respondia a esse ataque ás liberdades um tempo reencontradas.
A peça de Mickiewicz, apareceu no momento errado e sobretudo a sua estreia ocorria durante o desenvolvimento do processo checo. Se se acrescentar que o ambiente económico era pouco entusiasmante, logo se percebe que estavam reunidas as condições para uma explosão universitária que para ter êxito precisaria de apoio nos meios sindicais e nas fábricas.
Algumas greves esporádicas terão entusiasmado os estudantes que ocuparam algumas universidades e saíram para a rua. Mas os operários ficaram quietos e o fogo que ameaçava consumir a nação polaca foi apagado como fogo de palha que ao fim e ao cabo foi. Em Maio o movimento estava extinto. Gomulka poderia continuar a governar reprimindo aqui, diminuindo a pressão acolá. Durou mais vinte anos.

Na Jugoslávia, país tecnicamente não enfeudado a Moscovo, com liberdades inimagináveis para os habitantes do bloco de leste (liberdade de emigrar, de viajar, de criar empresas privadas etc..., o movimento tem origem num facto sem qualquer importância: uma rixa entre estudantes e uma brigada empenhada numa “acção de trabalho”.
A milícia intervém e os estudantes apanham pela medida grande. No dia seguinte são milhares a desfilar desde a cidade universitária nos arrabaldes até ao centro de Belgrado. Nova intervenção da milícia e novos combates de rua.
A greve universitária é proclamada, as faculdades são ocupadas e o já clássico Maio repete-se aqui em Junho.
A imprensa apodera-se do assunto. Os estudantes barricados sobem o tom das suas criticas. Não é só a intervenção da milícia que é criticada mas também as insuficiências do ensino, a falta de saídas profissionais para os licenciados, a “burguesia vermelha” de Belgrado e a falta de solidariedade internacional com os Vietnam e a revolução mundial.
Do lado do poder as acusações também não faltam: partidários de Djilas, saudosos do antigo regime monárquico, trotskistas ou, inimigos da Federação!, isto é nacionalistas pequeno-burgueses.
Finalmente, quando se pensaria que a situação atingia o paroxismo e que se assistiria a uma repressão selvagem, Tito, chefe indiscutível, que forjara o seu poder na resistência aos invasores alemães e na oposição à União Soviética, intervém e salomonicamente declara encerrado o conflito: a maioria dos estudantes é sã e tem razão. A culpa dos acontecimentos é toda de uma ínfima franja de anarquistas, da falta de cuidado da polícia e da situação internacional.
A intervenção dos “irmãos de armas” comunistas na Checoslováquia e a brutalidade com que é feita perante um vago e comedido protesto ocidental, convencem estudantes contestatários e autoridades diversas a esquecer afrontas antigas e fingir que tudo vai pela melhor no melhor dos mundos. Não ia, como já Voltaire provara dois séculos antes.

E agora, a excepção: Excepção porque no caso checo não se trata de uma revolta juvenil com maior ou menor ressonância na população. Não está em causa a oposição aberta ao regime mas algo mais profundo mesmo que isso nos pareça ridículo. É de independência nacional que se fala. De facto a queda de Novotny e a relativamente longa experiência de gestão de Dubcec como dirigente comunista, não faziam prever á partida nada mais do que uma mudança de equipa forçada pelas circunstâncias.
Nunca saberemos como é que um comunista eslovaco, educado na URSS, ex-resistente e homem do aparelho chegou á conclusão que era preciso temperar o vinho velho do comunismo em uso no leste. Levar a destalinização um pouco mais longe. Bastante mais longe, se entendermos por isso pedir a intervenção das massas na condução dos negócios públicos. E permitir o escrutínio de toda a actividade do Partido pelo povo, a todo o momento. E acabar com a censura. Ou seja permitir uma informação livre, heresia absoluta num sistema que fazia do controle da informação a pedra chave da luta pelo socialismo. A segunda pedra dessa “revolução” seria, deveria ser, teria de ser, a partilha do poder entre o Partido Comunista e outras organizações.
E era disso que se tratava. A primavera desagua no verão como se sabe, e as medidas tomadas por Dubcek, a pressão da rua, a mobilização da sociedade civil, a calma severa com que tudo se passava, faziam as autoridades dos países irmãos temer pelo pior. E provavelmente seria o pior que viria. Na óptica deles, claro.
Dubceb e Svoboda por seu turno acreditavam numa evolução pacífica do regime, numa adaptação dele que não pusesse em causa a direcção do PC. E essa é uma das ironias desta história trágica. Eles eram os únicos que acreditavam numa saída pacífica para a crise. Soviéticos, polacos, húngaros, alemães e búlgaros, estão convictos do contrario. E desta vez não deixarão os camaradas soviéticos sozinhos como em 56 na Hungria. O pacto de Varsóvia que nunca serviu para atacar o inimigo ocidental teve esta única e irrepetível aplicação prática: atacou o país que pretendia ensaiar um novo modelo de socialismo e de passo perpetuar um sistema em que os seus dirigentes, ingenuamente, acreditavam. Depois disso, ser comunista no ocidente foi, digamos, muito mais difícil. Para muitos militantes de esquerda foi mesmo impossível. Por uma questão de honra, de ética e de fé no socialismo.

Maio, maduro Maio 5

d'oliveira, 21.05.08




MUITOS VERÕES VIOLENTOS



Amore stanco amore d'officina,
amore che si spegne goccia a goccia

mentre corre veloce la catena
e tu perdi ogni giorno un po' di noi

Amore stanco amore che la sera
non sa più ritrovare il suo sorriso
Ci guardiamo dietro l'ultimo boccone,
ma troppo stanchi per vederci…
…..

Este é um trecho de uma canção de Ana Identici. Detenhamo-nos um minuto nesta cantora. Foi sensação em S Remo, era bonita, tinha boa voz, estava destinada a ser uma diva da canção. Todavia em pleno 68 achou que não queria ser apenas isso e começou a cantar um novo repertório. Combativo como se vê. A fama que rapidamente alcançou não era a fama que vale numa Itália que não quer sair do seu modelo. Hoje em dia, ninguém (quase ninguém) fala de Ana Identici. A mulher que cantou a condição operária, a condição feminina, a vida sem horizonte sofre o ostracismo a que foi votada pela boa consciência. Pelos que querem esquecer os anos de chumbo e, com eles, o resto, a revolta, a indignação e o medo a uma hipotética aliança DC/PCI que poderia ter mudado o destino do país.
Talvez assim se perceba o assassínio de Aldo Moro, por exemplo. Um governo claramente reformista que incluísse o PCI na área do poder afastaria duravelmente a impossível revolução com que os brigatisti sonhavam. E acabaria com os negócios frutuosos que, sob a capa complacente da direita da DC, engordavam os vários polvos, mafiosos ou não que alimentavam a crónica daquelas anos.
Entendamo-nos: as coisas não são tão simples como aqui, por economia, se apresentam, mas também não andam longe deste quadro geral. É que uma sociedade bloqueada não oferece grandes saídas e a Itália, mais do que qualquer outro país ocidental estava bloqueada. Extrema Direita e Extrema Esquerda encontram nesta situação o campo ideal de combate. E os poderes públicos alimentavam essa animosidade.
A deriva violenta da esquerda mais ou menos espontaneísta é todavia posterior à famosa e eficaz violência de direita alimentada pelos elementos mais radicais do partido de Giorgio Almirante. Foram mais de 4000 os atentados da direita, e dos cerca de cem assassinatos políticos registados entre 65 e 70 mais de oitenta trazem a marca da direita radical. Some-se a isso, que já é muito, a existência de vários complots dentro do próprio aparelho de Estado (alguns só muito tarde descobertos como o “Gládio”). A resposta não se fez esperar embora em ordem mais que dispersa. Elementos vindos do “Potere Operaio”, da “Lotta Continua” para já não falar em militantes directamente saídos da ACLI (Acção Católica Liceal Italiana) irão criar os primeiros grupos que praticam a luta armada (Esquerda Proletária, Voluntários Vermelhos, Grupos Armados Partidários – de Feltrinelli que morre aliás num atentado que preparava! ). Tudo começa por confrontos com elementos direitistas, deriva rapidamente para as zonas operárias “em defesa do proletariado oprimido”, continuará pela perseguição a elementos do PCI (aqui já são as Brigadas Vermelhas a operar) e finalmente enveredará pelas campanhas “sérias” de terror. Os anos setenta, os anos de chumbo, deixarão uma marca que ainda não desapareceu. Ainda há gente a monte, ainda há presos nas cadeias italianas, ainda há quem chore pelas vítimas que foram muitas e que, as mais das vezes nem sequer sabem porque morreram.
E há também o naufrágio dramático de um sonho de revolução e de transformação do mundo. A passagem de uma contestação saudável e necessária duma situação ingrata a uma luta em nome de um proletariado que se não reconhece nos seus pseudo salvadores, contra um “SIM” (Estado Imperialista das Multinacionais) que as Brigadas julgavam poder combater com uma revolução na Itália (com quem?), liquidando escolhidos representantes do Poder numa espécie de estratégia de acções exemplares que insurrecionaria as mais largas massas populares.
Isto que vem de ser sumariamente descrito foi elaborado em várias publicações por intelectuais universitários prestigiados e lido (mal lido) por jovens ultra-politizados com uma determinação só igual ao seu desconhecimento da vida de todos os dias. Por jovens que acreditavam, mesmo depois de Praga, numa organização ultra-leninista, num partido militarizado e na maldade intrínseca do revisionismo, do liberalismo e de mais uma série de crimes anti-socialistas constantes da vulgata em uso neste género de organizações desconectadas da realidade.
Os anos setenta verão um renascimento do terrorismo de direita (estação de Bolonha, 85 mortos mais de 200 feridos) que curiosamente apresenta motivações idênticas. Os radicais negros queixam-se do eleitoralismo do MSI, da falta de soluções salvíficas que liberte a Itália e o mundo do comunismo, reconhecem-se nas ditaduras latino-americanas do mesmo modo que Brigadas e Prima Línea se louvam nas guerrilhas, nos Tupamaros e nos Montoneros.
Em resumo: aquilo que hoje em dia muitos assacam à esquerda como se esta tivesse sido a única responsável dos “anos de chumbo” é, de facto, fruto de uma situação muito mais complexa, protagonizada por forças muito diferentes que chegam a incluir agentes do aparelho de Estado (serviços secretos, exército e polícia), crime organizado e agentes de potencias estrangeiras. Não, definitivamente a esquerda estudantil, ou parte dela, não é ré única no drama italiano. E se isso não lhe diminui as responsabilidades próprias também as não aumenta nem elimina as alheias. Que foram muitas. É altura de começar a falar delas.


* estação de Bolonha depois do atentado.

Maio, maduro Maio 4

d'oliveira, 14.05.08

Os filhos de D Camilo
e os afilhados de Peppone


1. No caso de por aí haver ainda leitores de Giovanni Guareschi, autor dos famosos “D. Camilo” onde se retratava uma Itália do Norte no imediato doppo guerra, convém esclarecer que o título é mesmo o que está aí em cima. D. Camilo o façanhudo mas bondoso arcipreste é que aqui se apresenta como pai relegando o ex-resistente comunista Peppone para o lugar de padrinho.
Isto vem a propósito do “Maio” italiano, dos seus intervenientes, do seu cenário (mais uma vez o Norte, boa parte do Centro e focos isolados no Sul) e, já agora, das classes sociais envolvidas.
Numa obra (“L’anno degli studenti”, De Donato ed., Bari, 1968) publicada a quente, em pleno processo, Rossana Rossanda (que nessa época ainda estava no C.C. do PCI embora em trânsito para o grupo Il Manifesto) disso dá conta quando, refere a brutal explosão demográfica na universidade: em 1968 há dez vezes mais estudantes do que em 1923. Em grosso, as universidades italianas (e a de Roma mais que todas) rebentam pelas costuras com o meio milhão de estudantes universitários que as frequentam. O mercado do trabalho começa a parecer reduzido perante a iminência de saída de cerca de oitenta mil novos diplomados por ano. Números não confirmados davam uma taxa de emprego na ordem dos 35% para os recém-licenciados.
O sistema político, por sua vez parece bloqueado. Uma sempiterna Democracia Cristã (a de Moro, exactamente) governa com eventuais apoios dos partidos de centro esquerda (sociais democratas de Saragat, sobretudo, mas também o velho PSI de Nenni). É o que fica conhecido por “compromisso histórico” O PCI, o mais poderoso e o mais original partido comunista da Europa Ocidental é claramente o segundo partido de Itália mas nem a sua ampla base social, a sua gigantesca máquina municipal e regional, a sua enorme influencia sindical, ou o prestigio dos seus intelectuais, o auxiliam na entrada no círculo do poder.
Contemporaneamente, ainda existem, e com singular influência, quer uma direita mais ou menos respeitosa, quer os neo-fascistas que por vários anos se distinguirão pela agressividade e pelos atentados que cometerão. Dir-se-á que são um grupo pequeno, ou uma constelação de pequeníssimos grupos. Pode ser, mas tentarão, e conseguirão por várias vezes, levar a cabo acções violentas e eficazes na medida em que alguma esquerda extra-parlamentar lhes responderá numa escalada que acabará nos longos “anos de chumbo”.
O bloqueio do sistema advém ainda da situação do Mezzogiorno e particularmente da Sicília. As máfias variadas que de Nápoles ao extremo sul pululam e a sua grande irmã siciliana controlam a base DC das regiões (e vão adquirindo crescente influência nas clientelas dos restantes partidos, PC excluído, honra lhe seja.
É neste cenário que numerosos grupos de estudantes, particularmente os de Trento, começam a manifestar-se. Ocupações, seat-in, cursos livres “universidade critica”, enfim mais ou menos as mesmas movimentações que se observam ou observarão nos restantes países europeus. Com uma diferença (e de peso), todavia: aqui a discussão política é mais nacional e recorre menos às lutas internacionais (Vietnam, anti-imperialismo, América Latina etc...).
Segunda diferença, e não menos importante: o Partido Comunista Italiano não vira costas ao movimento studentesco. Luigi Longo, o seu secretario geral recebe mesmo diversos elementos estudantis e reconhece ao movimento capacidade e razões para se incorporar numa frente ampla naturalmente dirigida pelos comunistas. É pouco? É de certeza muito mais do que em qualquer outro pais europeu. Mas dura pouco, obviamente. A ala mais ortodoxa do PCI (Giorgio Amendola, entre outros) critica o movimento estudantil, aponta-lhe as origens burguesas, o esquerdismo (a famosa doença infantil...) e a incapacidade política.
Convenhamos. Amendola não deixa de ter também razão. O movimento reúne tendências extremamente variadas, desde estalinistas empedernidos (mal vistos desde a época de Togliatti) até maoístas e trotskistas que também não cabem nos quadros “euro-comunistas” avant la lettre do PCI.
Em termos simples os estudantes apenas podem contar com o apoio de Rossanda e seus amigos. É pouco como depressa se verá.
Por outro lado, apesar do movimento não ter o beneplácito do único partido que poderia fornecer-lhe uma base operária real, não deixou de se projectar no mundo do trabalho. Não só porque havia jovens operários que se sentiam seduzidos pela militância dos jovens intelectuais mas também porque o mundo fabril acolhia muitos emigrantes do mezzogiorno menos politizados que os seus camaradas do Norte (e mais sensíveis à contestação da autoridade e dos poderes istalados) mas também porque as condições de trabalho eram extremamente duras.
Convém não esquecer que a Itália saíra de uma experiência muito dura. O regime mussoliniano, o fascismo puro e duro, quebrara o velho sindicalismo, perseguira as elites sindicais e reforçara o poder do patronato. A guerra com o seu cortejo de derrotas, sacrifícios e bombardeamentos, a guerra civil (e no norte foi exactamente isso o que ocorreu), travada entre resistentes, republicanos de Saló e ocupantes alemães, deixaram uma Itália devastada que nos anos sessenta ainda se estava a recompor.
E se é verdade que os ajustes de contas foram violentos não é menos verdade é que o golpe palaciano contra o Duce (que é deposto pelo Grande Conselho do Fascio) salvou muito colaborador da ditadura e forneceu um atestado de bom comportamento democrático a inumeráveis e respeitosos seguidores do regime deposto. A guerra fria e o governo da Democracia Cristã resolveram boa parte das questões políticas com a proclamação da República e o exílio do Rei. Também parece pouco. E é.
Não admira que num quadro destes onde se mistura uma DC desvirtuada, que aposta na “estratégia da tensão”, um centro esquerda que a ampara, um Estado dentro do Estado (a Máfia) um Sul reduzido à função de fornecedor de mão de obra barata, uma Administração corrupta e pesada e um PC impotente, a solução comece a ser procurada fora do sistema.
E é isso que um grupo de teóricos brilhantes se vai dedicar. A partir da experiência do “movimento” o passo seguinte traduz-se na criação de grupos políticos que se dedicarão à luta no meio fabril. Não pela via sindical mas recorrendo primeiro ás “acções exemplares”, ao combate contra os neo-fascistas particularmente activos e implicados em vários atentados bombistas (que obviamente começaram por ser assacados a anarquistas) e a acções de doutrinação. A Itália jovem e de esquerda é um labirinto de publicações teóricas, de jornais militantes, de revistas onde se encontra de tudo. Neste ponto estão a milhas dos franceses que os italianos devem achar bastante primitivos.
E até 1969 é este em linhas gerais o quadro em ue se insere a movimentação estudantil. A universidade é esporadicamente ocupada, as lutas com a polícia são frequentes, a discussão com os partidos políticos permanece aberta mas vai perdendo força e o Governo e as forças policiais continuam a apostar no esvaziamento do movimento, a tolerar a escalada dos grupos neo-fascistas e a sua cultura de violência ao mesmo tempo que se desenham cada vez mais nítidas as opções pela “strategia della tensione” (dentro da DC elabora-se a teoria de que é preciso incentivar os conflitos exteriores para depois se chamar a DC como bombeiro) apoiada na denúncia dos extremismos opostos (gli opposti estremisti): o perigo vermelho e o perigo negro que hão-de servir à polícia como indicadores de investigação (pista rossa e pista nera).
Numa segunda e última parte veremos (assim o espero) como é que um movimento tão espontâneo e interessante desagua nos anni di piombo com a sua caravana de atentados, cisões, assassínios e outras infâmias.

Na elaboração deste texto servi-me sobretudo de algo muito falaz: a memória de longas conversas, em Lisboa (1969), com Enrico de Angelis que me forneceu os primeiros documentos sobre o movimento; com Maria Baptisti, militante do Potere Operaio em Berlin, Novembro-Dezembro de 1970 e com Giancarlo (licenciado em Química mas porteiro de um hotel em Pescara. A sua militância num grupo insignificante – Stella Rossa – fora suficiente para entrar numa lista negra do patronato da indústria química.).
Obviamente repassei brevemente a obra de R Rossanda, já citada e o nº 44 de “Partisans” (Oct-Nov 1968:"le complot international", nomeadamente o texto “Théorie et Praxis du mouvement etudiant italian” de Carlo Donolo). Há um par de meses encontrei e voltei a perder alguns textos da época emanados das universidades de Turim, Trento, Roma e Milão. Se voltarem a reaparecer no labirinto desta biblioteca, pô-los-ei digitalizados para apreciação dos curiosos, mormente o leitor José.

* gravura: manifestação estudantil nas Galeria V. Emannuelle em Milão

Maio, maduro Maio 3

d'oliveira, 04.05.08

Ao longo destes textos tentarei dar um testemunho. Porque de certo modo vivi Maio. Intensamente. Cá e nos locais onde ele foi mais visível. Boa parte do que hoje sou, devo-o a esses últimos anos da minha vida universitária. Boa parte do meu empenhamento político posterior esteve marcada por Maio. Pouco importa o que isso queira exactamente dizer. Basta ler as revistas, os jornais, os livros que de repente voltam a inundar as bancas para perceber que o fenómeno não é unívoco e que, como num outro antigo texto disse (e tê-lo-ei aqui já citado) Maio pode ser (deve ser) encarado como o fim de uma época mas também como o início de outra. Em segundo lugar, o que se convencionou chamar Maio não se reconduz a Paris (de resto era exactamente isso o que se dizia lá, o que se sentia lá. Aquilo não era uma questão franco-francesa e o General de Gaule bem o compreendeu). É duvidoso que sem outros exemplos (os seat-in e os teach-in dos campus americanos, por exemplo) os acontecimentos se tivessem desenrolado como se desenrolaram. Parte dos militantes mais politizados estava ao corrente do que se passava na Alemanha, na Itália ou na Espanha (Portugal era mais ignorado, pesem embora os esforços dos emigrados portugueses que já não eram assim tão poucos).
E cá, apesar da censura, dos bloqueios ideológicos (que os havia...) também não eram desconhecidos muitos dos temas que afloraram na discussão em França. O movimento estudantil português estava umbilicalmente ligado ao francês. As famosas teses de Grenoble (..o estudante é um jovem trabalhador intelectual...) eram conhecidas, por vezes glosadas. A França era a principal fornecedora de literatura política, o francês ainda era a língua estrangeira mais falada por cá. E havia os laços criados pela crescente emigração económica e política para lá.
Dito isto, que é mais importante do que se julga (ou do que transparece em certas opiniões de que tenho tido conhecimento), pareceu-me interessante intercalar nestes textos algumas notas de carácter pessoal. Aliás, nos dois posts anteriores apenas citei livros que na altura li (exactamente no ano de 68, para ser mais exacto) e boa parte do que deixei como conclusão já fazia parte duma apreciação que, não sendo generalizada, se ia fazendo em Coimbra e, provavelmente nas outras duas cidades universitárias.
Resolvi, pois, recorrer ao meu catálogo de livros comprados (que mantenho desde 1959!!!) e, vendo que livros comprei em 68, tentar traçar um retrato, não de uma geração (não pretendo tanto) mas pelo menos de um militante estudantil que eventualmente se assemelha a mais alguns.
Em 68, andava muito interessado em estudar o colonialismo (razões não me faltavam...) e com um pouco de sorte perceber melhor a história e as culturas africanas bem como a questão negra americana. Hamidou Kane,l’aventure ambigue”; Ruytinx, “la morale bantoue”; J Jahn, Muntu, las culturas neo-africanas”, Césaire, “Une saison au Congo, R. Wright, “Écoute, homme blanc"; Malcolm X. "le pouvoir noir"; e um controverso Sartre, “Colonialismo y neo-colonialismo", uma edição argentina das “Situations V” milagrosamente encontrada numa livraria de Coimbra. Anos antes tinha lido “Reflexões sobre o racismo” que agrupavam o belíssimo “Orfeu Negro” e “A Questão Judaica” e devo confessar que, neste campo, ainda hoje me sinto tributário do pensamento de Sartre.
Também estava a começar a ler muitos autores ditos clássicos que chegavam através das colecções de bolso francesas (Garnier-Flamarion e 10-18, fundamentalmente): Rabelais, Voltaire, Toepffer, Tillier, Casanova; teatro (Beckett, Hochutt, - “Soldats” – Arthaud, O’Casey, Stanislavsky), história, além de, obviamente, política: algum Marx mais duro, Sombart, demasiado Mao, Bukarine, Friedman, Rosa Luxemburgo – “Marxisme contre dictature” -, Henry Lefebvre, K. Korsch e, muito na hora, Marcuse. De facto aparecera uma edição brasileira do “Homem Unidemensional” sob o título pavoroso de “Ideologia da sociedade Industrial” que aliás li depois do “La fin de l’utopie”, Dutschke, já citado em anterior texto, Cohn Bendit, “le gauchisme”; o “Discours de la guerre” de Glucksman e algo que na altura me impressionou bastante: “Traité de savoir vivre a l’usage des jeunes generations” de Vaneighen.
Deixei para um apartado especial desta lista o inevitável Althusser e os “cahiers marxistes-leninistes” comprados quase sempre numa livraria da rua Git-le-Coeur, hoje dedicada à BD para adultos! Era a China, claro, o farol iluminado pelos livros de Edgar Snow e de L. Bianco, lidos também neste ano. A ironia da história, se de ironia se trata, é que estas últimas leituras foram já defensivas: o milagre chinês começava a parecer-me suspeito e o “petit livre rouge” pareceu-me intragável. Pior só uma senhora que anos mais tarde foi muito popular entre os aprendizes de revolucionário: Marta Harneker! Dela li, na melhor das hipóteses um cento de páginas, e ainda hoje, tantos anos depois, me arrependo. Fica para desconto dos meus muitos pecados!
Hoje em dia, parece fácil (e soa a desculpa...) dizer isto. Todavia, em minha defesa, sempre acrescentarei que na mesma altura li Caillois, Bataille, um largo grupo de surrealistas, Queneau (a Sally Mara), Jarry (Tout Ubu), Lautréamont, Borges, Herberto Hélder (de que fui e sou fanático), Stendahl, Appolinaire (“Alcools”) Guillevic, Char (“Fureur et mystére), Pound (uma “Antologia poética”, traduzida para português) Saint John Perse, Ritsos e Enzensberger. E Baudelaire, todo! A poesia, sobretudo, mas também algum romance iam-me vacinando contra as derivas ideológicas mais dogmáticas. A explosão de Maio e o Agosto em Praga confirmaram ou fortaleceram as minhas ulteriores escolhas. E mostraram-me que era possível fazer política, ser contra, sem estar devedor de parelhos políticos que se iam revelando “cadaverosos”.
Não vou prosseguir esta lista que agora me parece enorme. Recordo-me, sem vergonha nem remorso que, academicamente, 68 foi um ano, digamos, “improdutivo”. Agora, à distância percebo porque preteri as sebentas e as deixei estar quietinhas numa estante donde só terão saído tarde e a más horas.
E convenhamos: quando tudo parecia estar a ser posto em causa (até os EUA tinham apanhado em cima com a ofensiva do Tet no Vietnam!) que valia um curso? E a "revolução" parecia tão sedutora...

*A fotografia pertence à série "Biblioteca a rebentar pelas costuras procura casa onde caiba" e seriam reconhecíveis os meus amados surrealistas, os dadaístas, os situacionistas, Vaneighem e Debord ao canto) bem como uma série de livros sobre África entre uma estatueta africana verdadeira!- e a fotografia de um trisavô (José Costa Alemão, capitão de 2ª linha, explorador no sul de Angola, que viveu rico e morreu pobre). Uma das fotografias em cima dos livros retrata o Maio possível português: Coimbra, Abril de 69. Lá chegaremos...



Maio, maduro Maio 2

d'oliveira, 01.05.08

Pálida Mãe

Deutschland, bleiches Mutter”: nunca o verso de Brecht foi tão verdadeiro como neste caso. Porque agora estamos diante dos filhos da guerra e do nazismo. Os filhos que, como Rudi Dutschke, não se sentiam bem na chamada “Republica Democrática” e achavam que a República Federal estava vendida aos “Konzern”, à América e à burguesia.
São estes órfãos que se engajam em todos os combates. Assumiram ingenuamente as culpas de pais e avós e sentem ser seu dever remir em pouco tempo os longos anos do terceiro Reich e da guerra. E causas não lhes faltam: desde o apoio aos refugiados iranianos e contra o Xá, às campanhas de solidariedade com o Vietnam. Curiosamente o principal bastião da juventude combatente é Berlim.
Berlim nos late sixties e depois é um pequeno oásis. Temendo a fuga de habitantes, dado a cidade ser uma ilha no meio da RDA, o governo federal concede subsídios, anima empregos, facilita a vida na cidade cercada. De todo o modo é a predominância de pessoas idosas e de jovens. E entre estes numerosos estrangeiros, bolseiros, refugiados, gente que começa a criar as redes de alternativos, os primeiros ambientalistas, enfim boa parte do que mais tarde constituirá o melhor da herança destes anos de luta.
Porque de luta se trata. Contra o regime do Xá da Pérsia, o protegido dos americanos, o homem cujas mãos estão, no dizer de muitos, tintas do sangue de Mossadegh, para já não falar das vítimas da SAVAK a famosa polícia secreta que persegue com a mesma constância islamistas, comunistas ou simples democratas. Será numa manifestação (Junho de 1967) contra o regime persa que um polícia assassinará Benno Ohnesorg. E é a partir desse momento que Berlin entra no ciclo das grandes manifestações.
(curiosamente, tenho desde há dias, uma carta minha enviada a meus pais em Dezembro de 71 e datada de Berlin: aí lhes falo da morte de Georg von Rauch, um militante da RAF (Rote Armee Fraktion) quase a nossa vista. As manifestações que se seguiram terão sido o último suspiro deste ciclo iniciado anos antes. A deriva tragicamente terrorista deste grupo, que não obstante teve mais apoios do que seria de esperar, é também uma das heranças do Maio alemão)
A segunda frente de luta dos jovens alemães é mais grave e porventura mais séria: o silêncio dos pais sobre os anos do nazismo. E convenhamos que alguma (muita) razão teriam. E dos dois lados do muro. Quer Adenauer quer Ulbricht acharam melhor passar uma esponja sobre os milhões de “pequenos nazis” (a expressão é originária da RDA), sobre a sua responsabilidade histórica, os crimes, os silêncios e as cumplicidades.
A guerra fria ajudou, obviamente. E é aí, ou é também aí que entronca o anti-americanismo radical dos estudantes alemães. Convenhamos que é uma ironia o facto de o auge da contestação se localizar na cidade que só o poderio americano defendia dos russos e dos seus aliados alemães.
Perguntar-se-á qual o papel da RDA, do comunismo à alemã, nisto tudo. Independentemente da alegação de que alguns refugiados da RAF se terem acolhido nela, das ligações entre a RAF e alguns grupos palestinianos, destes por sua vez terem passagem franca pelo leste europeu, conviria talvez recordar que para a grande maioria dos esquerdistas alemães a RDA era a pura incarnação da degenerescência burocrática e penitenciária do ideal comunista. Os bisnetos de Rosa Luxemburg e de Karl Liebknecht, desconfiavam do desvio soviético, dos seus aplicados discípulos orientais, liam os heterodoxos e juravam por Adorno e Marcuse. É provável que a famosa teoria dutschkiana da acção exemplar e da provocação à polícia fossem consideradas pequeno-burguesas ou, pior ainda, doenças infantis e esquerdistas pelos ideólogos do SED, o extraordinário Partido Socialista Unificado, pseudónimo do comunismo alemão oriental. Dutschke propõe “desmascarar” os poderes instituídos obrigando-os a defender-se violentamente da ofensiva das minorias conscientes que, todavia, não restringem o seu campo de actuação ao país mas antes estão em consonância com os movimentos revolucionários de todo o mundo e sobretudo com os que, de algum modo, escapam à lógica soviética. Daí o apoio ao Che, ao Viet-Cong e às organizações contestarias emergentes um pouco por toda a parte.
A reacção é, evidentemente, violenta. Em Berlin, e no resto da Alemanha, a imprensa do grupo Springer ataca diariamente e com inusitada linguagem a minoria estudantil liderada por Rudi o Vermelho. O SPD tenta meter na ordem a sua organização de juventudes, o Sozialisticher Deutscher Studentenbund (S.D.S.) de que Dutschke é um dos líderes. A polícia vai metodicamente fichando os militantes e apoia sem reservas as “provocações” que lhes são feitas na Universidade Livre de Berlin. E o que tinha de acontecer, acontece: a 11 de Abril de 1968 (repare-se na data) dispara três tiros sobre Rudi em plena rua. E é, de certo modo, o fim brutal de uma carreira: Dutschke sobreviverá 11 anos ao atentado mas as sequelas do atentado afastá-lo-ão da política e da Alemanha. Aliás a sua morte acidental é ainda resultado do atentado.
Sob certo prisma, a breve carreira de Dutschke e o seu desaparecimento abriram caminho à radicalidade absoluta da RAF. Não me repugna acreditar que esta pequena organização viu esse atentado como prova absoluta da impossibilidade da luta pacífica ou, pelo menos, da luta não terrorista.
Não se pretende aqui desculpar a deriva terrorista (e finalmente inócua do ponto de vista revolucionário) dos Baader, Meinhof, Esslin et alia. Entre 1972 e 1988 mataram gente e morreram (suicidaram-se, ou foram suicidados) quase todos os seus membros. Nos dois últimos anos terão sido libertados condicionalmente os últimos elementos ainda vivos da organização. A sua pegada na História (com H ou h) foi mínima se é que já não se apagou. A reunificação alemã enterrou a RAF sob os destroços do muro, das fábricas abandonadas, e das ilusões perdidas. |Não me custa dizer que ainda bem.

* o cartaz (de que tive um exemplar!, que saudades...) é do SDS e significa em livre tradução: "Todos falam do tempo. Nós não."

** De Rudi Dutschke pode ler-se "Écrits Politiques", Christian Bourgois ed., Paris, 1968

Maio, maduro Maio 1

d'oliveira, 16.04.08

En Mai fait ce qu’il te plait.


Eu não sei se era assim a frase, se sequer havia uma frase destas mas prometi ao meu antiquíssimo e pacientíssimo leitor José escrever sobre aquele Maio de há quarenta anos, aquele Maio pai de todos os Maios seguintes, ou de alguns apenas, se quisermos. Todavia, e em obediência aos preceitos desse Maio de 68, aos da minha preguiça e a esta maneira anárquica de sentir e viver o mundo em que vagueio, irei escrevendo o que me recordar.
E comecemos por algo que hoje em dia não dirá nada a ninguém com, digamos, menos de quarenta ou até cinquenta anos.
Maio de 68 é praticamente o ano do fim de uma das mais persistentes ilusões revolucionárias dessa década de ouro: refiro-me, claro está à teoria do foco guerrilheiro que de certo modo foi exaltada por um jovem universitário francês (sempre eles) ex-aluno da “École Normale Superieure” (sempre essa “grande escola”) viveiro de revolucionários desde sempre.
A obra de Regis Debray, pois é dele que falamos, causou uma impressão fortíssima entre a comunidade esquerdista e leitora (as coisas nem sempre vão juntas, aliás, raramente vão juntas). As teses de Debray, que esteve por várias vezes em Cuba e que posteriormente foi aprisionado na selva latino-americana e acusado de prática guerrilheira estão vertidas neste livro que é hoje uma antiguidade varrida pela história consistem num confuso somatório de conversas com um Fidel de Castro ainda pouco sintonizado com os partidos comunistas clássicos e empolgado pela sua própria história revolucionária. A rapaziada jovem viu nisto uma critica ao comunismo estático e conservador da União Soviética o que, somado ao romantismo ainda vivo da “revolución de los barbudos”, ao facto de no Vietnam se travar uma guerra de guerrilhas duplicada por outra mais convencional, deu a Debray uma exagerada e imerecida fama de teorizador revolucionário. Não o era, como Fidel também não. O facto de em Cuba a guerrilha ter vencido Baptista não torna o “foco guerrilheiro” mais credível do que outras tácticas revolucionárias. Aliás se alguma verdade se pode extrair das conversas Debray Castro é apenas esta: o êxito cubano pôs de sobreaviso as ditaduras latino americanas que fizeram o possível por frustrar qualquer futuro foco guerrilheiro nos respectivos países.
Ora, o mundo é pequeno, é aqui que entra em cena mais outro ícone revolucionário: Ernesto Guevara, o “Che”. O Che, morto num obscuro barranco boliviano, por um “soldadito” como se diz na canção, a 7 de Outubro de 1967. A morte do Che é também a morte dessa teoria sem substância nem base, mero repositório de experiências avulsas a que a loucura da sorte sorriu, uma vez sem exemplo. Não se põe aqui em causa a honradez pessoal, a coragem, o idealismo da personagem mas apenas a crença cega na teoria do foco, na ideologia de implantação “exemplar” da revolução num meio atrasado com o pretexto de que nesses países do terceiro mundo ou não há proletariado ou hsvendo-o este está feito com o conservadorismo e com a inoperância dos partidos comunistas clássicos.
O “Diário del Che en Bolívia” na hipótese de estar publicado sem cortes nem arranjos, é um documento terrível mais pelo que se adivinha do que pelo que diz.
Juntemos-lhe agora, do mesmo ano, 1968, um coisa patética, ingénua, chamada “Journal d’un Guerillero”: nele um suposto jovem comandante das FARC (Colômbia) conta as suas aventuras no então jovem mundo da guerrilha na selva colombiana. Na badana de apresentação (ah, ano prodigioso!!!) escreve-se que este texto é apenas o primeiro duma série resplendente e vitoriosa de crónicas de uma gueerilha que abrasará toda a América Latina. A futurologia é uma arte difícil e em 68, ano de todos os prodígios até a poderosa Seuil apostava na revolução.
Todavia, nem toda a gente de esquerda ia à missa de Castro e Debray. Na mesma altura (68) e em França, uma outra editora provavelmente com os mesmos intuitos revolucionários (Robert Laffont) editava um panfleto ácido de Antoine G. Petit com um título incandescente: “Castro, Debray contre le marxisme-leninisme”.
Com este panfleto acabava o que aliás só existira na cabecinha pensadora de uns europeus ricos e cansados: a aliança entre as teses maoístas e o castrismo. Não existira nunca qualquer convergência de posições excepto o facto de haver umas centenas de jovens que inconformados com o velho comunismo do papá, queriam mais acção, mais emoção, quiçá reviver os tempos heróicos da resistência francesa ou os ainda mais mitificados dias de Outubro de 17.
Dirão os leitores que penosamente aqui chegaram que isto é já conhecido (coisa de que duvido, desculpem lá), que é velho (que novidade!) e que é passado. Aqui enganam-se redondamente. Esta mitologia revolucionária, esta “revolucionarização da revolução”, este continuo anuncio de amanhãs que cantam, não está morto e muito menos enterrado. No México para não ir mais longe, em Chiapas, alguns embuçados ressuscitaram alguns dos mitos do foco, edição melhorada, que hoje mesmo no Público era esboçada por um cavalheiro adepto do Open Marxism e da sua versão zapatista.
Herança de 68? Nem por isso. Todavia, e porque 68 foi muito mais do que uma mera guerrilha ideológica entre grupos minoritários, estamos arriscados durante todo este ano comemorativo, a apanhar com vinho novo e aldrabado em odres antigos veneráveis.

Obras citadas “Révolution dans la révolution?R. Debray, Maspero, 1967; "Castro Debray contre Le marxisme-leninismeAntoine G. Petit, Laffont, 1968; “Journal d’un Guerillero”, Seuil, 1968; “El diário de Che en Bolívia", Instituto del Libro, La Habana, 1967, ainda devem andar por aí. Poderão todavia ser substituídos com vantagem pelo texto desigual, combativo e generoso de René Dumont: “Cuba est-il socialiste?", col Points, Seuil, 1970

* o "incursões" está prestes a entrar no seu 4º ano de estratosfera, três dos quais com a minha imprestável colaboração. Esta é a minha série comemorativa do aniversário.