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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

o leitor (im)penitente 211

d'oliveira, 11.07.23

 

 

José Matoso

mcr, 10-7-23

 

O Zé conheci-o em duas etapas. Primeiro enquanto leitor fiel, atento, entusiasmado e grato, muito grato. Isso, este conhecimento, começou rigorosamente há 40 anos pois foi nessa altura (1983)  que li a primeira de uma vintena de obras que tenho dele.  Tratava-se de “Religião e cultura na Idade Média portuguesa, editada ainda pela Imprensa Nacional em 82. Posteriormente, José Mattoso emigrou para a Estampa, uma excelente editora comandada pelo meu amigo (e colega desde o 1º ano do liceu) António Manso Pinheiro, um editor de mão cheia, culto de que já por várias vezes referi aqui. 

Depois dessa descoberta fascinante, foi como dizem os ciclistas sempre a descer, a ganhar velocidade e prazer. Demorou uma boa dúzia de anos até o conhecer graças à Zé Carvalho, amiga muito querida que foi mesmo minha cunhada. E graças a esse encontro (acho que a Zé levou o marido a casa da minha mãe numa altura em que eu também lá estava.  Se já tinha excelente impressão do historiador, nesse momento acrescentei-lhe o que foi o início de uma bela amizade que perdurou por muitos e bons anos pois durante algum tempo o casal Mattoso viveu perto de Aveiro, numa casa da Zé onde o Zé chegou a dizer numa entrevista que era aí que provavelmente morreria. Volta e meia apareciam no Porto, outras vezes fui eu até lá e posso testemunhar que o Sé era um bom garfo e um excelente conversador. 

Perdi-lhe a pista quando voltou para Lisboa já doente e muito isolado. Todavia, à falta de convívio iam aparecendo livros e eu não perdoei um que fosse. 

E se digo perdoar é apenas por causa do peso de três calhamaços com o título genérico “Património de origem portuguesa no mundo” e focando a Asia, a África e a América. Só um entusiasta que possua uma boa mesa é que se atreve com aqueles volumes que medem 21x24 cm e andam cada um pelos 4/5 quilos. De todo o modo e apear das 500 páginas por tomo valem a pena pela quantidade de informação, pelo tratamento da mesma, pela esplendorosa iconografia. Se bem me recordo, também não eram propriamente baratos...

Quem eventualmente chegou até aqui pensará que desdenho da “História de Portugal” onde Mattoso praticamente reuniu o que havia de melhor na historiografia portuguesa. Ou a “História da vida privada” (quatro fortes tomos ou ainda a longa (e total) lista das biografias dos reis de Portugal  de que também ele foi coordenador (e autor pelo menos num dos casos). Luís Miguel Duarte, autor da esplêndida biografia de D Duarte, contou-me como J M não largava os autores, os apressava e, por vezes, os injuriava por se atrasarem na entrega dos originais. Mas referiu também a permanente disponibilidade do coordenador para resolver problemas, dilucidar dúvidas, aconselhar.

Como, acima,  afirmei tive o enorme privilégio de conviver com ele o tempo suficiente para m aperceber das suas qualidades e receber um par de informações sobre temas de História portuguesa que sempre me apaixo(nar)am. Entre eles, recordo um dos seus traços de personalidade ou de ingenuidade. Certo dia conversámos sobre a batalha de Ourique e o milagre associado. Nunca levei a sério a crónica desse sucesso mesmo se uma das testemunham do milagre tenha sido um avoengo (a par de uns bispos e outro(s) cavaleiros do Rei. Que o meu antepassado existiu é um facto; que terá guerreado largos anos junto do pai de D Afonso Henriques e mais tarde deste rei parece crível mas é com profunda tristeza que descreio do milagre e provavelmente da batalha que ainda hoje provoca discussões inflamadas e escritos de toda a ordem. O Zé entretanto, sem se dar conta da minha descrença avisou-me tranquila mas veementemente que tudo aquilo, batalha tal como a descrevem e milagre era pura ficção. Fui obrigado a dizer-lhe que também eu não levava a crónica a sério mesmo se o facto de ter um longínquo avô metido a testemunha do milagre me desse um gozo enorme.  

Todavia, dele recebi uma grande dose de opiniões, de ensinamentos para já não falar da gentileza e da simplicidade de que fazia gala, Mesmo se além daquela aparente humildade houvesse também uma clara consciência do seu papel na renovação dos estudos de História...

Deveria, finalmente, referir o seu enorme papel de coordenador das obras que mencionei acima (as histórias de Portugal e da vida privada e os 34 volumes dedicados aos nossos reis) É verdade que a esmagadora maioria dos volumes tem autores variados mas não se deve menosprezar o papel de quem coordena.

Bastar-me-á lembrar duas grandes tentativas  que n\a chegaram a bom porto pois ficaram incompletas (a “Nova História da Expansão  Portuguesa  em que ficaram por publicar os  Iº, IVº e IXº volumes e a  “Nova História de Portugal” donde os VIº e VIIIº volumes nunca viram a luz do dia. E note-se que também estas tentativas tinham um leque de coordenadores e autores de grande qualidade e obra feita ).

 Não quero com isto alimentar guerras académicas que despertaram o entusiasmo e a curiosidade no último quartel do século XX mas os factos falam por si. 

Alguma comunicação social veio dizer que a morte aos noventa anos foi uma grande perda para o país. Convenhamos, José Mattoso, para além da idade, estava grandemente debilitado pela(s) doença(s) e desde há um par de anos que a sua mais que parca qualidade de vida era conhecida. 

Foca uma obra que, ao contrário de tantas outras, mereceu e recebeu todas as honrarias da Academia e do Estado.

E do público, o que não é coisa pouca. José Mattoso conseguiu ser conhecido muito para lá do seu mundo universitário. E, para além de tudo o resto, mereceu o forte reconhecimento geral que, de resto até lhe chegou cedo, logo nos anos 80.  

 

*na ilustração José Matoso, Maria José Carvalho, Serafim e Fátima Guimarães. E com mais vinte quilos do que hoje, um certo mcr que cada vez mais se vai habituando a ver desaparecer amigos e gente boa.  

 

 

 

o leitor (im)penitente 237

d'oliveira, 08.08.22

 

 

 

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Aflições do leitor compulsivo

(e do comprador viciado)

mcr. 8-8-22

 

 

Quando os meus pais compraram a casa onde actualmente vivo, toda a gente achou que era um exagero. “É enorme”, diziam, “uma pessoa perde-se aí dentro...”

O meu pai defendia-se: que tinha dois filhos (logo mais dois quartos); que precisava de um escritório; que o quarto da empregada daria uma excelente sala de pequenos almoços, enfim desculpava-se de ter escolhido o maior apartamento naquilo que, na altura, era o mais novo e mais “in” bairro da cidade. Aliás, segundo os promotores do empreendimento, aqueles andares destinavam-se a pessoas que queriam abandonar as enormes, soturnas, frias, desconfortáveis casas onde moravam. Casarões gigantescos, com jardins fundos, onde algum pé de penca convivia com japoneiras lindíssimas e antigas.

As famílias tornavam-se cada vez menos extensas. os filhos, também em menor quantidade procuravam apartamentos pequenos mas arejados, fáceis de conservar e de limpar.

Foi a essa transformação ocorrida no início dos anos setenta que este tipo de novos bairros respondeu. Apartamentos amplos, desafogados capazes de albergar as mobílias antigas instados em condomínios que tornavam as despesas de manutenção numa brincadeira em comparação com os custos das casas de que se viam livres.

Em mais outro ponto o meu pais, sobretudo ele, tinha razão: os divórcios chegavam em força aos jovens casais  pelo que ter um quarto para um filho descasado não era propriamente um exagero. E no meu caso, não foi. Ao fim de um ano e meio de instalados, eis que lhes apareci com três malas de livros, outra de roupa a pedir casa e pucarinho.

Afreguesei-me rapidamente ao bairro.  Havia tudo desde o banco ao cinema, uma piscina, um jardim, cafés , um livraria e uma papelaria para os jornais. E comprei um T 1 que, imaginem, tinha 81 metros quadrados!

Quando a minha mãe, já viúva, resolveu ir para Oeiras, para perto dos netos e das companheiras de canasta, mudei-me de armas e bagagens, e sobretudo de livros para esta casa. Durante dias andei numa roda viva a transportar a livralhada sabiamente embalada num cento de caixas de cartão  para vinhos que pesavam toneladas!... o meu amigo Manuel Sousa Pereira encarregou-se de desenhar as estantes. Para duas salas e um escritório fora os corredores. “Não tens livros que cheguem...”, avisou-me.  Repontei que havia de chegar o momento em que não teria estantes para todos os livros. E o Manel, que já me conhecia de ginjeira, acreditou.

Hoje a essas primitivas estantes foram acrescentadas outras já provenientes do maravilhoso Ikea que terá muitos defeitos mas tem as estantes Billy, uma invenção genial.

E a livralhada a pingar constante e impetuosa... As ºparedes que não tem livros, tem quadros, esculturas, máscaras africanas, meia dúzia de posters de estimação como se vê na vinheta e fotografias Acrescem as estantes (sempre Billy) para os discos e para os dvd. Um cafarnaúm!

Ora, entre os livros que se acumulam, há umas dúzias de calhamaços enormes (e nem falo dos atlas, outra mania mansa e invasora)  que não cabem em estante nenhuma. São livros que em média tem 30 cm de altura, ou seja mais 50 a 70% da altura de cada estante!

Resolvi, reordenar parte deles, fazer-lhes fichas novas  e, já agora, que estamos na silly season, dar a conhecer alguns. U porque são raros, ou curiosos, ou muito ilustrados mas sobretudo porque os fui recolhendo em alfarrabistas portugueses, espanhóis ou franceses para onde tinham sido “empandeirados” pelos herdeiros ingratos mas sofredores de impenitentes leitores da minha espécie.

(isto do “empandeirar”, bonito e expressivo verbo, tem uma história: estava eu, certo dia, na antiga livraria do Bernardo Trindade – que agora tem outra que dizem maravilhosa mas onde já por duas vezes bati com o nariz na porta – quando uma balzaquiana boazona e muito “tia” apareceu para saber se o Bernardo poderia ir ver uma biblioteca do avô, entretanto defunto, pois queria vender a casa e “empandeirar” os livros. Convém dizer que o finado fora governador de uma colónia e tinha uma excelente biblioteca africana que agora anda por aí dividida. Um conhecido meu, descendente de um intelectual estudioso das coisas de Moçambique, murmurou-me, indignado “empandeirar”... Eu respondi-lhe com um jogo de palavras sobre o que faria, caso a dama estivesse pelos ajustes... Isto é um blog para famílias de modo que me fico por aqui, tanto mais que agora, um criaturo da minha pobre e antiga espécie já nem se pode definir como homem,  binário, “cis” qualquer coisa, ocidental, branco etc...  )

Voltando à vaca fria: ficam os raros mas corajosos leiotres (e leitoras, claro) que irei descrevendo amenamente esses  tijolões de papel impresso na esperança de suscitar em alguma vítima destes escritos a curiosidade, o interesse, a gula por obras que tiveram o seu tempo, os seus cultores e a sua utilidade.

Caso a coisa não vos pareça atraente, força”, vão a banhos que é tempo disso. E com boas leituras que, entretanto recomendo, desde a enorme biografia do Pessoa, pelo Richard Zamith, até aos “diários do mesmo poeta a que vou meter o dente. Quem prefere policiais tem mais um Padura relativamente fresco: “A transparência do Tempo” (para já não rferir a Tetralogia de Havana em dois volumes e utro belíssimas histórias. Entretanto uma senhora senhora chamada Anne Aplebaum publicou “ Fome Vermelha” (que explica muito do horror dos ucranianos pelo império russo)enquanto um cavalheiro de seu nome (un nom a coucher dehors) Pedrag Matvejevitch tem em português mais um excelente livro: “A outra Veneza”... boas leituras, boas sardinhadas, boas férias  que por enquanto o covid está menos feroz.

* na vonheta: alguns livros grandes de que darei notícia. Em cma: poster sobre o Vietnam pilhado na minha residencia de estudante de DireitoComparado em Amsterdam 1972 ou 1973; fotografia em poster do maior ajuntamento de grandes músicos de jazz organizado em Harlem pela revista "Esquire". poster com uma fotografia da place de Saint Germain des Pés tirado exactamente da mesa onde costumo sentar-me na esplaada do "deux magots": e do meu jornal francês  desde os anos sessenta!...Se tudo correr como quero lá estarei em finais de Setembro... 

 

o leitor (im)penitente 215

d'oliveira, 29.06.21

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Liberdade vigiada 54

Uma biblioteca para mais dez anos?

mcr, 29 de Junho

 

Em tempos, preocupado com o avanço da idade, com os embaraços que os meu livros  causarão à família, pensei legá-los desde já a uma biblioteca publica-

A minha primeira escolha foi a Biblioteca Municipal Fernandes Tomás da Figueira da Foz.

De facto essa biblioteca, uma excelente biblioteca com um espólio valioso, foi iniciada por um grupo de cidadãos figueirenses que não só doaram as suas colecções mas também criaram um fundo para aquisição de livros.

Entrei nela, com 9/10 anos pela mão da tia Néné, uma leitora compulsiva que a certa altura esgotou a lista de romances em português segundo declaração do senhor Santos o bibliotecário, homem de aspecto severo que escondia um coração de ouro e um imenso amor pelos livros. Era coadjuvado por um casal de surdos mudos, respectivamente sua filha e genro que, todavia, cumpriam as suas tarefas, incluindo perceber o que os leitores queriam, sem falhas.

Foi lá que li os Tarzans todos da colecção Terramarear, todo o Salgari e os primeiros textos clássicos para jovens da autoria de Adolfo simões Muller e as primeiras versões também para jovens da Odisseia, da Peregrinação e outras.

Às tantas, já me permitiam andar a vasculhar as estantes à procura de livros desde o Twain até ao Fenimore Cooper. Uma felicidade!

Portanto, em homenagem a esses tempos de descoberta da alegria foi a esta Biblioteca que primeiro me dirigi.

Surpresa: acharam a ideia fantástica mas...não tinham espaço! Já tinham começado a recusar ofertas de bibliotecas!

Espantado, resolvi passar pela biblioteca do Porto. Mais uma vez fui lindamente recebido e mais uma vez descobri que a biblioteca rebentava pelas costuras. Não estava cheia, estava atravancada. Havia um número gigantesco de caixotes com livros fechados à espera que os bichos comessem o seu conteúdo.

Entretanto, recordei algumas conversas com americanos que volta e meia apareciam pela Delegação Regional do Norte da SEC à procura de livros portugueses, sobretudo revistas, que faltavam nas colecções das suas universidades. Falavam de bibliotecas com milhões de livros como cá se fala das que tem milhares. Eu ficava possesso de raiva e de inveja, tanto mais que, nos alfarrabistas notava a concorrência de compradores profissionais americanos em temas que me interessavam (Expansão; colónias; textos sobre arte ou etnografia africanas etc)

E depois das conversas que tive com uma técnica superior da Biblioteca do Porto (que goza do privilégio de depósito obrigatório) fartei-me de procurar asilo para uma biblioteca que continau a crescer. Quando morrer os herdeiros que chamem um alfarrabista e que esse profissional vá vendendo em leilão os meus livros. É verdade que assim se dispersam colecções, autores, temáticas. Que me importa? Já cá não estou para ver!

A obra foi confiada ao meu amigo Souto de Moura, um arquitecto com provas fartas e cuja primeira obra, a “Casa das Artes” na actual Direccão Regional de Cultura foi por Rui Feijó e por mim  (passe a imodéstia) um combate de anos. Ministro ou Secretário de Estado da Cultura que cá aparecesse era confrontado com a maquete da obra de Souto de Moura, com a história do concurso por ele ganho por unanimidade do júri, enfim uma boa hora de tentativa de aliciamento da personalidade governamental. A um, creio aue a Coimbra Martins, recentemente desaparecido, o Rui Feijó chegou a dizer algo como “Senhor Ministro deixe o seu nome ligado à pedra”.

E também com a cumplicidade de João Diogo Alpendurada sucessor de Feijó e meu antecessor nos destinos da DRC, lá chegámos a bom porto. Daí a amizade com Souto de Moura aquém me liga outra mania: somos dois fanáticos de Herberto Hélder!

Ora, e aqui é que começa a questão, Souto de Moura que sabe bem como são as Câmaras e como estas tratam a cultura, apresenta, diz o jornal, uma solução excelente (arquivo em torreão como é o caso da Biblioteca François Mitterrand) mas modesta: segundo o arquitecto o aumento para 54 km de estantes dá para os próximos dez anos. Não sei se já os próximos ou os que se contarão a partir da inauguração da obra. E tudo por cerca de vinte milhões.

Claro que vinte milhões é dinheiro. Todavia, este abençoado país gastou em auto-estradas desertas muitas e muitas vintenas, o mesmo sucedendo em projectos para o fatal aeroporto de Lisboa que nunca mais sai do papel.

Lembraria, porém que dez anos de crescimento do espólio é pouco, quase nada. Que seguramente haverá dezenas ou centenas de belíssimas bibliotecas privadas cujos donos gostariam de perpetuar legando-as à BMP (e eu logo na primeira linha, estão por cá 25000 mil espécimes, 10% dos quais é um espólio francamente bom, raro, caro. Digo 10% mas pode ser mais, tudo depende. De todo o modo, sei de colecções portuguesas cujos donos se debatem com o mesmo problema (Uma há que é apenas a maior colecção mundial de textos e documentos dobre escravatura! Até há pouco i dono não tinha decidido o que fazer com ela mesmo depois de assediado por universidades americanas que, gulosas, já terão arriscado fortes ofertas).

Imagino Souto de Moura a arriscar a medo a quantia para este projecto. Basta, aliás, ler, no Público as reacções dos vereadores da posição. Torcem-se à menção do preço mesmo confessando o interesse do projecto. E se fossem 50 milhões e digamos cinquenta anos de crescimento assegurado?

É fácil, disparar daqui números gordos. Não serei eu quem terá de encontrar o dinheiro e já não estarei para apanhar com alguma derrama por via das obras “faraónicas” que alguma vez algue, se atrevesse a propor.

Todavia, depois de saber qual a hipótese de crescimento dos espólios, de saber que há um imenso número de livros em caixotes, temo bem que a nova biblioteca não tenha espaço para crescer mais que três a cinco anos. Quanto às bibliotecas que por aí andam, a solução continua a ser dispersá-las em leilão ou vendê-las, como vai ocorrendo cada vez mais frequentemente, a quem quer e pode pagá-las a bom preço, os americanos em primeiro lugar e uma multidão de émulos logo a seguir.

De todo o modo... sou dos agarram esta hipótese de biblioteca apresentada. Esperando, fervorosamente, que a coisa vá para a frente. Aliás so quando vir os trabalhos a arrancar é que descansarei. E mesmo assim...

*na vinheta A biblioteca do palácio nacional de Mafra

    

 

o leitor (im)penitente 209

d'oliveira, 25.03.21

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Saída precária 11

Às voltas com os livros

mcr, 25 de Março

 

 

Os leitores mais assíduos já me conhecem a mania, ia a dizer o vício mas também nem tanto: é verdade que compro demasiados livros, que não resisto a mais uns tantos, mas pelo menos, não entra nenhum sem levar uma bicada, duas ou muitas.

No caso em apreço, vou ler um de fio a pavio (ou de cabo a rabo, se preferirem, que nestas coisas a nossa comum língua é rica e muito mal aproveitada. Fala-se cada vez pior, com erros de toda a espécie e sem respeito pela ortografia. A bandalheira do acordo que ninguém respeita, excepto os patetas do costume – ou seja os portugueses de Portugal – desencadeou um semi-analfabetismo que o Parlamento, lamentavelmente não vê ou, pior, não percebe) a correspondência de Joaquim Namorado com Mário Dionísio (“lado a lado como sempre JN e MD”, Casa da Achada e Lápis de Memória, 18 euros ).

Conheci muito bem o Joaquim que era um autentico mentor  na sua cátedra da revista “Vértice” de que ele era o director de facto. Fomos mesmo vizinhos e, durante anos frequentei-lhe a mesa de café. Devia dizer às mesas porquanto ao fim da manhã o Joaquim Namorado assentava praça na Brasileira (com Paulo Quintela, Luís de Albuquerque, os irmãos Vilaça, Ivo Cortesão  e mais um ou outro. Eu quando podia escapava-me das aulas chatérrimas de Direito e marchava para a “baixa” e algumas vezes fui admitido àquele cenáculo. Depois do almoço e do jantar, Namorado vinha até à Praça da República (a “praça vermelha” e assentava arraiais num pequeno café que tinha (como o do lado, aliás) esplanada. Talvez se chamasse Peninsular ao algo do mesmo género mas o nome varreu-se-me da memória.  Aí juntavam- mais à vontade se vários professores de Direito de que destaco Carlos Mota Pinto, Orlando de Carvalho  (na altura ainda fora da faculdade a preparar um dos mais demorados doutoramentos de que me lembro, José Bastos  e alguns estudantes entre os quais eu que era o mais pontual, o mais assíduo e o menos estudioso como se calculará. 

Cada conversa era uma quase aula a que não faltava o bom humor e a pequena conspirata política. Uma das razões porque sempre achei miserável a campanha contra Mota Pinto (um belíssimo professor , um bom amigo e uma excelente pessoa) vem desses dias e sobretudo da pratica reiterada dele como professor, como examinador e como conhecedor de Direito. Carlos Mota Pinto era um democrata quando essa palavra se aplicava a poucos.

Voltando ao Joaquim Namorado, vaia a pena ouvi-lo falar sobre arte, literatua , cultura em geral e sobre ciência. Matemático, tentava explicar à rapaziada com fumos de literata a força e a indeclinável presença da “outra cultura”, a científica que para nós todos era um mistério mais difícil que o da Santíssima Trindade.  Vivia modestamente, porquanto o Poder tinha-lhe uma vontade negra. Nem sequer o deixavam ser professor do ensino particular. Resultado, esmifrava-se a dar explicações que dariam bom resultado pois era conhecido, entre os cabulões, como o “endireita de Celas”, bairro onde morava. Conta-se mesmo a história de um estudante universitário de Matemáticas Gerais  ou mais acima que, sendo explicando de Namorado, se aterrorizou com o exame e resolveu faltar. Foi o Joaquim a casa dele, tirou-o da cama a bofetão e dali até à faculdade moeu-o de cachações pois o alucinado jurava que não andava, que não entrava na sala do exame, que se calaria. E a cada jura, pimba!, bordoada feia. Passou com boa nota, foi  um excelente professor, fundador (no tempo difícil) do sindicato, presidente de Câmara na Democracia, deputado, Secretário de Estado e mais um ror de coisas. Com oitenta e bastantes ainda mexe. Se tem um canudo ao Joaquim o deve e à tarei com que foi mimoseado.

Portanto, um homem destes, um poeta interessante mas de obra curta, um dos que melhor soube resistir ao sufoco do Estado Novo, com consequências duras para ele, tem por força de ter uma correspondência interessante  e, no caso de Dionísio, um neo-realista extremamente crítico e atacado pelos puristas do ultra realismo socialista (vale a pena ler o que Pacheco Pereira diz dessa geração num dos tomos da biografia de Cunhal  - que nunca mais acaba!...- para perceber como Joaquim Namorado, um fiel mas também fiel aos seus amigos de geração – manteve com Dionísio uma relação epistolar.

Vale também a pena, recordar que Mário Cesariny meteu Joaquim Namorado no “surrealismo abjeccionismo”, o que não deixa de ser curioso e... revelador.

E já que se fala em Cesariny eis que há notícia da saída de mais um tomo da sua obra extensa. Desta feita, e sob a curadoria segura e inteligente de Perfecto E. Quadrado, um espanhol estudioso do surrealismo português com vasta obra publicada sobre o tema, saiu “Poemas Dramáticos e Pictopoemas” (Assírio e Alvim, claro) que complementa uma outra edição cesariniana (“Poesia”, mesma editora, 2018).  À cautela, encomendei os dois pois tenho a certeza de que me falta muita coisa do poeta, pelo menos poemas e escritos vários não reunidos em livro ou publicados em edições de pequena circulação.

Finalmente, saiu um livro sobre Vasco Pulido Valente. O autor, Céu e Silva gravou largas dezenas de horas de conversa com VPV (Uma viagem com Vasco Pulido Valente) e acaba de as publicar em livro.

Ontem, ao recordar, o “dia do estudante” de 1962, lembrei-me bem de alguns discursos de estudantes dessa época. Numa das muitas vezes que fui a Lisboa a mando da DG da AAC para contactos e troca de informação, ouvi-o discursar na Faculdade de Letras. Logo a seguir ouvi o Medeiros Ferreira de quem fui amigo desde essa época. Ambos me impressionaram e ao VPV fui-o lendo desde os tempos de “O Tempo e o Modo” (aliás, tê-lo-ei lido ainda antes no “Almanaque” revista em que ele entrou com 15 ou 16 nos !!!). Li atentamente os sue muitos livros, acho que “Ir para o Maneta” é uma das melhores obras de História publicadas nos últimos vinte ou trinta anos, diverti-me com as crónicas que foi publicando num português que invejo e a que nunca chegarei. Curiosamente, conheci-lhe (e apreciei muito) os pais que eram amigos dos meus primeiros sogros desde os tempos da clandestinidade mas com ele nunca me cruzei directamente. Teremos falado episodicamente duas ou três vezes e desses contactos de pura circunstância nada ficou.  O livro deve chegar amanhã e vai todinho ser lido no fim de semana.  E ao mesmo tempo, irei reordenando as estantes dos surrealistas. Ou seja vou meter.me em trabalhos tremendos  para reorganizar aqueles três metros bem medidos. Às vezes, penso que sou ligeiramente masoquista...

 

Mas isto distrai-me da prisão domiciliária.

Na vinheta: Joaquim Namorado

PS: ao leitor ABM não consigo abrir o seu comentário de que só há seis ou sete linhas.   

o leitor (im)penitente 217

d'oliveira, 17.04.20

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EVOCAÇÃO  DO 17 DE ABRIL DE 1969

 

Abro as portas do tempo devagar

colhendo mil memórias de um só dia.

 

No espelho destes anos que passaram

sinto a sombra dos sonhos naufragados.

 

Há hoje na cidade nova peste.

Cerca os dedos da vida de um bolor

que nos queima e nos perde sem parar.

 

Não estava escrito então este silêncio

na boca das revoltas que inventámos.

 

Não era o não ser desta agonia

que apunhalava a negro a cor das ruas.

 

Por isso, esta guitarra que se esvai

desmoronada em peste  rua a rua

colhe em silêncio toda a luz do dia.

 

Escrevamos pois de novo outro lugar

onde caiba em pleno o mês de abril.

 

                        Rui  Namorado

                   [ Coimbra, 16 de abril de 2020]

poema publicado no blog "O grande zoo" 

Eu conheci o Rui ainda em 1960, logo que, caloiro, cheguei à faculdade. Ainda hoje me divido: seria Coimbra a “dos lavados ares” (Eça? ) Ou um negrume igual ao do resto do país embiocado e temeroso, um relento a século XIX, patente nas capas e batinas, nas trupes, nos senhores lentes tão contentes de si mesmos, nos “futricas” que se desbarretavam à passagem dos “doutores” imberbes que eram o eixo principal do rendimento de inumeráveis habitantes da cidade?

Contra uma universidade parada no tempo, encerrada na “alta”, começava com a AAC sob a direcção de Carlos Candal, uma outra e nova tentativa de libertar os espíritos e a palavra.

Rui Namorado fez parte desse grupo, reduzido, firme, generoso que conspirava a todo o momento, poetava nas horas vagas, estudava de quando em quando e sonhava um outro Portugal.

Comecei por o ler na “Via Latina”, o jornal da AAC, onde também escreviam Manel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Zé Carlos Vasconcelos, Francisco Delgado, o Zé Silva Marques e o César Oliveira. Destes, restam o Rui, o Manel e o Zé Carlos a quem, deste recanto, mando fortes, rijos, muitos, abraços bem como às belas mulheres que os aturam mais do que eles merecem.

O Francisco e o Zé Silva Marques partilharam, com o Manel, o exílio que os tempos, aqueles tempos, não eram saudáveis para quem se opunha. De todos fui amigo, tenho (espero) todos os livros que publicaram e que li, à medida que saíam com emoção e sem parar.

Quase todos estiveram nos “Poemas Livres” e na “Poesia Útil” publicados em Coimbra na década de sessenta.

Os quatro primeiros estrearam-se em livro via Vértice, depois de publicarem na revista, onde também, colaborei sempre que a censura o permitiu. Depois, alguns foram publicados pela Centelha, uma aventura editorial onde o Rui, o Fernando, eu e muitos outros se empenharam.

Onde houvesse uma trincheira, o Rui aparecia. Não admira que tenhamos sido companheiros em Caxias, onde também esteve o Chico Delgado ou o António Lopes Dias, ainda há dias antologiado por d’Oliveira em “Textos Alheios” aqui neste blog onde se tenta manter uma porta aberta para o futuro. Em 69, lá estava ele, no Conj., uma espécie informal de directório da crise académica. Depois de sairmos da Universidade continuámos a cruzarmo-nos noutro grupo informal e conspirativo que acabou quase todo no MES, donde, também, quase todo, saiu rapidamente.

Além da poesia, RN publicou vários livros imprescindíveis sobre cooperativismo onde, aliás, era um reconhecido especialista, de memórias e de política em geral. Uma vida literária que resume o século.

* Francisco Delgado foi, como o Rui, expulso da Universidade, exilou-se e fez toda a sua vida no estrangeiro. Publicou três livros “Dire l’amour”, “Rompre le silence” e Poemes de l’amour païen” (poemas do amor pagão, Pierre Jean Oswald ed, Paris 1974, que o único que tenho)

**José Augusto Silva Marques foi um conhecido militante do PC que se evadiu d a cadeia dessa polícia no Porto, funcionário clandestino de notável coragem e dissidente mais tarde. Exilado, regressou a Portugal em 1974, foi deputado e dirigente do PPD. Escreveu “Relatos da Clandestinidade, o PCP visto por dentro” Em Coimbra, nos anos de faculdade foi uma das vozes mais duras e mais críticas nas Assembleias Magnas.

Na vinheta: Rui Namorado, obviamente. 

 

 

 

 

o leitor (im)penitente 216

d'oliveira, 27.02.20

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Indomável!

 

Vasco Pulido Valente

(“Não o teres derrubado ídolos mas tê-los derrubado em ti eis a tua vitória” – Nietzsche)

mcr (Fevereiro de 2020)

Conheci-o durante a crise académica de 62. Eu e o Carlos Bravo fôramos encarregados pela Direcção Geral da Associação Académica de fazer de correios entre Coimbra e Lisboa e isso permitiu-me conhecer muita gente na Universidade de Lisboa incluindo, grata lembrança, a extraordinária Noémia de Sousa, poetisa moçambicana que estará entre as três melhores vozes poéticas de toda a África lusófona desses anos terríveis. A Noémia não era estudante mas aparecia muito pela cantina do Técnico, vizinha com a Casa dos Estudantes do Império.

Todavia, deixemos para outra ocasião uma incursão na literatura africana de expressão portuguesa e voltemos ao tema fundamental: Vasco Pulido Valente.

Vi-o pela primeira vez numa assembleia geral na faculdade de letras onde era aluno. Fiquei nessa altura muito bem impressionado pelo seu tom, a sua vivacidade e a sua clareza. Eu vinha de Coimbra onde se cultivava ainda, à sombra de Antero, uma eloquência muito século XIX. VPV usava frases curtas, argumentava com uma pitada de humor e não apelava ao sentimento mas sobretudo, já nessa época, à razão. Em boa verdade, eu talvez já o conhecesse dado que ele pertenceu à equipa fabulosa que fez o “Almanaque” (Outono de 1959 – Verão de 1961, 18 números) onde pontificavam alguns dos melhores desde o José Cardoso Pires, a José Cutileiro e, Luís de Stau Monteiro, Pertencer a este clube já dizia muito de um rapaz que nem 18 anos ainda tinha.

Depois, li-o em “O tempo e o modo” que, na sua primeira e melhor fase, também não arregimentava medíocres, sofríveis ou sequer bonzinhos. Desapareceu-me do radar leitor provavelmente por ter ido para Oxford onde se doutorou.

E é a partir de 1974 que VPV se torna um cronista que raramente perdi de vista. Um cronista e um escritor pois vejo agora que é de 1974, o primeiro dos (17) livros que tenho dele. Era um pequeno ensaio com o título “As duas tácticas da monarquia perante a revolução” (edições D Quixote, 1974). Em poucas frases, num estilo já inconfundível (ele dizia “pimpão”) explicava algo que muitos colegas e confrades demoravam duzentas páginas...

A obra escrita divide-se em dois campos: os ensaios de História e as recolhas de crónicas publicadas ao longo de quase cinquenta anos. No primeiro aparecem obviamente os textos que melhor mostram a sua profunda erudição (desde “O Poder e o povo” até ao – para mim – excepcional “Ir para o Maneta” sem esquecer “Glória”ou “Um herói português”.

No campo dos segundos coligem-se crónicas publicadas quase ininterruptamente durante o mesmo período. Trata-se de escolhas (não constam todas as que escreveu) e nelas perpassa não só um a funda ironia, alguma causticidade mas sobretudo um conhecimento profundo do país e dos seus desastres. Tudo servido por um estilo cintilante mesclado com algum (bastante) humor e ancorado numa língua segura. Limpa e usada com grande mestria.

Costuma dizer-se que um estilo claro dá imenso trabalho e é prova de uma cabeça muito bem organizada. VPV foi, no ultimo quarto do sec XX e primeiro do XX!, um claro e o melhor exemplo disso. Não há nestes quase cinquenta anos nenhum outro cronista (exceptuando Manuel António Pina, num registo profundamente diferente, aliás) que se lhe assemelhe e, sobretudo, que tenha durado tanto tempo com o favor de inúmeros leitores. E os jornais bem sabiam isso: VPV nunca mendigou uma coluna jornalística, bem pelo contrário.

Uma tão grande carreira cronística implica obviamente não só a criação de uma legião de admiradores mas outra, também robusta, de adversários, na generalidade políticos paroquiais que se persignavam metaforicamente a cada passo: que VPV era um adepto do “bota-abaixismo”, “petulante”, ”amargo”, “pessimista” sei lá mais o quê. Mas liam-no a cada passo, havia mesmo os que tentavam responder e até apareceu um pobre diabo que tolamente prometeu umas bofetadas! Em boa hora o fez porquanto o escândalo foi tal que lhe retiraram um cargo ministerial para o qual lhe faltava tudo desde conhecimentos até habilidade, inteligência e competência.

O grande problema de quase todos os criticados era que a frechada de VPV acertava fundo e não vinha inquinada de vã maledicência mas obrigava a pensar.

Fora deste foro de literatura e de combate jornalístico, fica o homem que nunca vergou e tão pouco se acomodou. Mesmo não dando grande importância ao adolescente que foi mandado para um colégio interno (e só quem, como eu, os frequentou naqueles tempos é que sabe que género de prisão aquilo era...) há o estudante universitário que “faz” 62, o jovem que milita no M.A.R. (Movimento de Acção Revolucionária) onde participaram Jorge Sampaio, João Cravinho, Nuno Brederode entre outros (e só nomeio estes pela proximidade à crise de 62) o Secretário de Estado da Cultura de Sá Carneiro que suscitou uma feroz resistência entre muito intelectual ligado aos meios artísticos e sobretudo à mediocridade artística que imperou (e impera) naqueles anos difíceis em que o talento, a criatividade e a inteligência eram postergados por tonitruantes posturas políticas que pretendiam – mesmo sem o conhecer –salvar o “Povo” de que desconheciam tudo. Durou pouco o seu consulado e menos ainda durou como deputado. À primeira advertência sobre a obrigação de votar de certa maneira numa questão menor, saiu batendo com a porta.

Todavia, esta liberdade aumentada (uma vez alijada a sinecura parlamentar) não modificou em nada o seu percurso de cronista ou seu “cursus honorum” académico. Ficaram pelo caminho alguns projectos e eu lamento muito uma biografia de Eça que ele terá pensado levar a cabo. De todo o modo aí estão os dezassete livros (creio que haverá mais um mas não tenho a certeza) quase todos esgotados (o que também prova o interesse dos leitores).

Na hora da sua morte, sucedem-se as homenagens (algumas surpreendentes) e também um que outro desabafo escondido com o rabo de fora. O homem morreu mas as pequenas raivas ainda ficaram por aí.

Como leitor assíduo foram muitas as vezes em que discordei, me agastei mas nunca perdi de vista o estilo notabilíssimo e o desafio que o que ele defendia (ou atacava) me impunha. Estou-lhe grato por essa conversa à distância não só porque me permitiu perceber s razões da minha desconformidade como como alguns dos seus argumentos e conhecimento melhoraram a minha visão do mundo.

E é curioso notar que VPV conseguia desagradar a alguma (alegada) Esquerda que se sentia desconfortável com as suas análises mas também a uma forte fatia da Direita que não lhe tolerava a liberdade e a crítica impiedosa a grande parte dos mitos fundadores de que se alimenta(va).  

VPV, como acima disse, colaborou no notabilíssimo “Almanaque”. Num dos seus números havia uma ilustração e uma frase a condizer “para onde apontam estes monumentos? – Para sua própria monumentalidade!” (cito de memória com preguiça de subir até à estante onde jaz a minha colecção).

VPV foi um “empecheur de tourner en rond” ele que me desculpe este francesismo aplicado a alguém tão imbuído duma sã cultura anglo-saxónica!) e nunca foi à bola com os “monumentos” indígenas. Em boa hora!...

*na imagem: escriba (Egipto) ou de como e por muitas vezes, a função de escrever foi honrada.

 

 

o leitor (im)penitente 211

d'oliveira, 08.08.19

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O estado da burocracia e a burocracia do Estado

Ou

Como gastar dinheiro inutilmente

 

Este Agosto vai ser atípico. O calor é moderado, as eleições estão perto, as medidas governamentais atropelam-se umas às outras como se se quisesse mostrar em poucos meses trabalho que deveria ter sido feito em anos. E os fogos, mas isso é já uma triste e persistente tradição do Estio.

E os “casos”. Ah!, os “casos”, as burrices, as tontices e as desculpas de mau pagador. Felizmente, para o dr. Costa, existe um cavalheiro chamado Rui Rio que parece ter sido talhado para ser o anjo da guarda do primeiro ministro.

Vamos então aos “casos”. A ideia peregrina de caracterizar uma compra de lápis, bonés e esferográficas num assunto urgente e imperioso daria para rir não fora o caso de ser sobretudo para chorar.

É difícil não pensar que esta compra traz com ela o cheiro fétido do compadrio mesmo se não for esse o caso. Um comentarista do “Público” avança a hipóteses (que, à luz do que se conhece da funçanata pública, não é assim tão descabida) de a negociata se ter feito apenas para ultrapassar a omnipresente e paralisante burocracia que, neste domínio, rege as compras feitas pelo Estado.

Eu mesmo assisti a compras estapafúrdias feitas por uma instituição em que mais tarde trabalhei. Para não perder umas verbas do orçamento, em fim de ano fizeram-se rapidamente umas compras de estiradores, de uma guilhotina enorme e de mais um par de coisas que não recordo. Os estiradores foram arrumados na cave por absolutamente imprestáveis e desnecessários. A guilhotina (enorme) serviu meia dúzia de vezes, fins a que, pelo preço e tamanho e características, não estava especialmente destinada. Acabou por ser oferecida a uma cooperativa artística...

Tudo isto ocorreu porque, naquele tempo, havia (haverá ainda?) uma regra que estipulava que se as verbas atribuídas não fossem gastas nesse ano civil seriam perdidas a favor do Estado e o orçamento seguinte teria em conta essa menor despesa. Ou seja, se um dirigente poupasse dinheiro era premiado no ano seguinte com um orçamento menor! Mesmo que as necessidades fossem maiores e prementes.

Quando entrei na instituição, consegui que, no último mês do ano civil, se utilizasse o excedente em verbas de equipamento comprando alguns tapetes para as salas do palacete onde estávamos instalados e onde era hábito haver pequenos concertos, exposições e lançamento de livros ou conferencias e colóquios. Ao que sei, quarenta anos depois, os tapetes ainda lá estão, um pouco usados mas úteis e decorativos. Já algumas das obras de arte (nomeadamente pintura e pequena escultura) andam perdidas ou. na extraordinária expressão da senhora Ministra da Cultura, estão em local incerto, por encontrar.

Desconheço quais são, actualmente, as regras que presidem aos orçamentos das instituições públicas que gozam de autonomia financeira. Se foram as mesmas são paralisantes e potencialmente prejudiciais.

Note-se, de resto, que o Estado, o nosso Estado, tem uma notóriadificuldade em lidar com compras e com vendas. Neste cpítulo, boa parte da actividade empresarial do Estado adapta-se mal à concorrenci quando não invade pesadamente a esfera do privado. No capítulo da ediçãoo de livros já aqui descrevi a visão horrenda de pilhas e pilhas de livros sepultados em armazéns repletos, a encherem-se pó, a criarem bicho. Basta recordar as centenas de títulos editados durante as comemorações dos descobrimentos. Quando descobri alguns numa pequena espécie de livraria situada na Torre do Tombo, soube que aquilo era apenas a ponta do iceberg de um gigantesco acervo perdido num armazém (em S João da Talha?). Todavia, mesmo encomendando exemplares dessa abandonada montanha de livros, não se garantia satisfação do pedido. Faltava quem fosse ao armazém e nesse faltavam escadotes ou algo semelhante para alcançar as prateleiras mais altas tão cheias quanto vazias estavam as mais ao alcance da mão do eventual mas rao trabalhador que lá se deslocasse!

Vi, claramente visto, as garagens da SEC no tempo em que esta estava na Avenida de República, pejadas de incontáveis e instáveis pilhas de livros editados com apoio do Estado. O mais extraordinário é que, estando ali, ao alcance de qualquer mão, não eram alvo de pilhagem, roubo, ligeiro desvio. Nada! Estavam ali numa espécie de limbo, afastados de qualquer eventual livraria que os quisesse vender.

Durante anos, frequentei, interesseiro e interessado, uma instituição de inegável interesse científico e editorial, onde fui pescando a preços de saldo de saldos, títulos fundamentais para quem se interessasse pela história portuguesa e, especialmente, pela da expansão colonial. Nos alfarrabistas, os escassos exemplares que se encontravam andavam a preços fulgurantes! Nos leilões a coisa ainda fia mais fino. A CG que critica, com sobrada razão, a invasão desordenada de livros por todo o lado, observou-me que, pelo menos, eu deveria comprar esses títulos em dobro para revenda do segundo exemplar. Todavia, eu (se calhar a exemplo do Estado incapaz) não consigo dedicar-me a tal negócio.

Aliás a nenhum negocio! Culpa minha, claro.

* a estampa: exemplares da revista Oceanos que andam pelos alfarrabistas a preços que uivam. Comprei muitos dos exemplares que me faltavam na Torre do Tombo e ainda consegui várias caixas arquivadoras a preços baixíssimos. Quem, a meu conselho lá foi por mais, bateu com o nariz na porta. Havia mas estavam no fmigerado armazem! 

O leitor (im)penitente 210

d'oliveira, 06.06.19

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Na morte da Sibila

mcr Jun 2019

Diz-se, com algum exagero, que “Cem anos de Solidão” fagocitou toda a restante obra de Garcia Marquez. Não é exctamente assim mas, na verdade, nenhum dos livros posteriores (e alguns de grande qualidade) ultrapassou aquele cometa.

No caso de Agustina, um destino idêntico, envolve o enorme romance “A Sibila”.

Há obras que suscitam um tal interesse e um tal entusiasmo que se tornam incómodas para o próprio criador. Como se os leitores se arrogassem do direito de exigir, a cada novo livro, uma outra obra maior, incomensurável, um outro arrebatamento duradouro.

Nada disto diminui, bem pelo contrário, Agustina. Mas a quem a conheceu via “A sibila”, toda e qualquer obra posterior sabe a pouco (um pouco agustiniano, claro, nada a ver com a mediocridade contentinha que por aí reina. Ou com o “mainstream” tão comum na literatura portuguesa dos últimos cinquenta anos do século XX.)

Conheci mal Agustina, cruzámo-nos poucas vezes e em nenhuma delas tive oportunidade de estabelecer um diálogo sério e proveitoso. De certo modo, dei-me mais com alguns familiares com quem, por razões diversas, tive muito maior contacto. Destaco, desde logo, o dr Alberto Luís, um advogado de grande qualidade, um homem cultíssimo e um excelente conversador. Vezes sem conta mos encontrámos na livraria Leitura onde íamos quase diariamente por novidades literárias. A Leitura, um pouco mais tarde do que Alberto Luís, acabou e com ela fechou-se um ciclo de oiro de livrarias portuenses mesmo se algumas subsistem. Em boa verdade, a procura de livros e a atenção de livreiros esforçados minguaram conjuntamente. A grandes superfícies livreiras estão entregues a um par de comerciantes que entendem que ganhar dinheiro pode ou não ser compatível com vender livros por atacado.

Hoje, pode ser mais interessante visitar um alfarrabista (ou melhor ainda: frequentar os seus leilões) do que uma livraria reduzida a estantes cheias de best-sellers e de livrinhos fabricados por estrelas da televisão e da sociedade cor de rosa. As criaturas do jet-set tem êxito assegurado seja qual for a paupérrima redacção que apresentem. Os chamados valores consagrados continuam a disputar as montras e os expositores mais em evidência relegando para os sítios mais esconsos algumas verdadeiras pérolas. Ainda recordo a miserável recepção que os livrinhos de Raduan Nassar por cá tiveram. Acabaram por ser vendidos a preço vil numa espécie de feiras-saldo . E, mesmo agora, que o prémio Camões lhe deu mais visibilidade, consta que vende pouco. E neste vender pouco vai muito, visto que o número de exemplares por ediçãoo baixou vertiginosamente.

Além do marido, conheci e privei, com gosto e reconhecimento, com a filha Mónica que foi minha colega no Ministério da Cultura. Vi-a dirigir com competência, zelo e êxito o Museu da Literatura, primeiro, e o Soares dos Reis depois. Mais tarde acompanhei-lhe os primeiros passos literários (primeiros e seguros, diga-se para já) e fui o pior associado do Círculo Agustina Bessa Luís, obra que tem tanto de qualidade como de devoção e piedade (no sentido bom e antigo) familiar.

Gostaria, desde longe, de lhe dizer que tem aqui, mais do que um admirador, um amigo grato, dela e de todos os seus.

Aproveitando a boleia seguramente generosa de Agustina, lembraria agora que, mesmo na sombra persistente do preconceito e da desmemória literária e cultural deste país que não lê, há um grande grupo de mulheres escritoras cujas obras valem ou ultrapassam as dos seus congéneres masculinos. E, citando apenas as desaparecidas, bom seria ver aparecerem de novo leitores e leitoras para Irene Lisboa, Isabel da Nóbrega (ai o “Viver com os outros”!...) Maria Judite de Carvalho que está em reedição (não percam, pelas alminhas, “Tanta gente Mariana), Fernanda Botelho (idem pela “A gata e a fábula). Poderia juntar-lhe mais uma meia dúzia de mulheres que escrevem muito bem, que são inteligentes e que merecem mas espero que estes quatro exemplos suscitem a curiosidade de alguns. E que essa curiosidade leve a outras descobertas, incluindo a de escritoras ainda vivas e que isso comece a recentrar o papel das mulheres escritoras portuguesas.

Isso não diminui Sofia ou Agustina, bem pelo contrário.A literatura portuguesa, a boa, entenda-se, não parou em Florbela, em Irene Lisboa em Sofia ou em Agustina. Não passa é sem elas que a engrandeceram, que em muitos momentos a vivificaram, a robusteceram. Eu sempre achei que há mais (e melhores) leitoras que leitores. Vi isso ao vivo na Póvoa ou em Matosinhos onde asmulheres eram multidão em relação aos leitores. Poderiadizer que é a curiosidade o que as faz correr estantes, livrarias e bibliotecas mas, mesmo que entenda a curiosidade como algo de optimo, de refrescante qualquer coisa que faz avançar o mundo e a civilização, isso só não chega. Sensibilidade? Desejo de perceber o mundo e o outro? Responda quem souber ou quem quiser. E leiam, leiam muito estas (e outras) belíssimas autoras. Há todo um mundo à vossa espera.

Em boa verdade, até MaoTse Tung ou Mao Zedong (é como quiserem) escreveu com alguma justiça (não sei se sincera) "As mulheres são metade do céu". Só metade, grande timoneiro, só metade?

 

 

O leitor (im)penitente 208

d'oliveira, 02.10.18

Nem todos os mortos são iguais

(lembrança de Fernando Fernandes, livreiro e homem de bem)

mcr 2.10.18

Conheci o Fernando Fernandes em 1959/60. A livraria “Divulgação” mais tarde “Leitura” ficava mesmo no meu caminho do colégio para a “baixa” do Porto (como aliás a “Académica” onde ainda pontifica o Sr.  Nuno Canavês, um alfarrabista de primeira água, o melhor do Porto e um dos três ou quatro grandes alfarrabistas que conheci ou conheço).

 Recordo o Fernando eventualmente porque a livraria que também era galeria organizou uma exposição de Ângelo de Sousa. Também isso lhe devo e à restante malta da “divulgação”.

A partir de meados dos anos 60, comecei a frequentar a livraria com assiduidade, tanta quanto me permitia a magra bolsa de estudante. E comprava livros, claro. Um pouco mais tarde, já casado e com muito maiores permanências na cidade, em casa dos meus excelentes e muito lembrados sogros, a Leitura (a Divulgação, fora-se num suspiro e reapareceracom o novo nome, já com a ajuda de Carvalho Branco). A partir de 1971, comecei a advogar e tinha o meu local de trabalho a duzentos ou trezentos metros. Razão mais que suficiente para me tornar presença diária na pequena tertúlia do fim da manhã. E assim continuei por muitos anos, mesmo depois de FF se ter reformado.

O Fernando Fernandes era, além de homem culto e interessado, um livreiro de mão cheia. Conhecia bem a clientela, mimava-a, percebia que se fornecesse a alguns clientes catálogos e publicações periódicas sobre a produção livreira internacional, mormente a francesa e a inglesa, isso teria como fruto mais e mais encomendas de livros estrangeiros. Recordo-me que mal recebia o “bulletin du livre” (sempre em três ou quatro exemplares) avisava um grupo de eleitos a quem emprestava por horas, ou um, dois dias a publicaçãoo. Recolhia em seguida um bom punhado de encomendas que pagavam largamente o seu investimento. Anualmente requisitava outros repositórios de edição que eram disputados e consultados pelo mesmo grupo de fieis que não se coibiam de assinalar com iniciais ou sublinhados os livros que lhes suscitavam o interesse. Desta forma também descobriu grupos de clientes com tendências semelhantes de tal modo que, quando um deles pedia um livro, logo ele telefonava aos restantes do grupo, avisando que ia encomendar tantos exemplares quantos fossem solicitados rapidamente. Eu, e seguramente outros, informávamos sobre recensões literárias em revistas e jornais igualmente estrangeiros e mais uma vez FF replicava a informação e suscitava o apetite nunca satisfeito dos leitores viciados.

À minha conta, comprei-lhe três ou quatro mil livros, se calhar mais.

Quando se anunciava ou pressentia uma edição mais surpreendente, cobiçada ou politicamente suspeita, o mesmo método de antecipação era usado e com êxito. A “Leitura” era, seguramente, uma das livrarias campeãs na venda de livros proibidos ou passíveis de o serem. Autores havia para os quais se usava um critério idêntico. Assim, o Herberto Hélder. Em suspeitando de uma nova obra, o Fernando fazia uma grossa encomenda e prevenia os eventuais interessados que não se faziam rogados. E era vê-los dia após dia, babando-se de prazer pelo livrinho que a volta do correio traria...

A livraria, ela própria, editava também um boletim mensal criteriosamente elaborado com centenas de referências. Quem tivesse tido paciência e inteligência teria hoje uma belíssima paisagem dp país literário e leitor. Mas ninguém pensava nisso, claro. E assim se perdeu (?) uma curiosa história da edição portuguesa da segunda metade do século XX (acrescentada, evidentemente, de uma boa informação sobre as edições em línguas mais próximas).

Os leitores compulsivos, entre os quais me incluo, sabem bem que não há nada como a visita constante às livrarias. E também nisso, a “Leitura” mostrava os seus galões. As montras, sobretudo, eram expositores não do autor da moda ou dos best-sellers (não quero dizer que fossem absolutamente ignorados) mas de muito jovem poesta ou novelista, de muito ensaio desconhecido que o generoso livreiro por si, ou a conselho de alguém, expunha.

Publiquei in illo tempore, um livrinho de crónicas. Em duas ou três semanas, o Fernando persuadiu, aliciou, quase uma centena de generosos e amáveis leitores que deram conta de quase 10% da edição.

(o mesmo,aliás, devo à Maria Helena Alves, na Havaneza da Figueira da Foz e ao Joaquim Machado fundador do império “Almedina”. A propósito, o Joaquim, que abrira uma sumptuosa livraria na baixa de Coimbra, era ainda mais atrevido que o Fernando. Volta e meia, em chegando à “Brasileira” (café saudoso e vagamente ressuscitado, recentemente) descobria um volumoso embrulho que me estava endereçado. Eram livros que o raposão do Joaquim achava que eu quereria. Duma vez, apareceram-me, além dos “Écrits Intimes” de Vaillant mais duas ou três obras de grande porte e preço s condizentes. Em francos a coisa ia muito para além dos cem o que eram mais do que eu tinha por mês para todas as despesas. –“Ó senhor Machado isto é muita areia para a minha camioneta, não lhe posso pagar...” – “Paga, paga, que eu espero” retorquiu-me o maganão. E paguei, claro, a duras penas, num sem número de prestações.

(Cabe aqui uma referencia a mais alguns enormes livreiros com que me cruzei: além dos já citados, honremos a memória de Domingos Lima (na Lello, Porto), José Vicente (Olissipo, Lisboa), Hipólito Clemente (Opinião. Lisboa) e a dinastia Perdigão, avô, filho e neto (Latina, Porto). E François Maspero (La joie de lire, Paris) Gente que sabia de livros, amava os livros, divulgava-os e respeitava os leitores. Morreram e ninguém os substituiu...)

Fernando Fernandes fez vida de livreiro, durante aproximadamente cinquenta anos. Creio que nesse quase meio século influiu mais, despertou mais gente, promoveu mais a cultura do que uma esmagadora maioria de agentes culturais que por aí pululam. Ainda recentemente, um farfalhudo grupo de criaturas entendeu dizer o que pensava de um futuro museu Com um outro que a propósito de uma exposição também entendeu mostrar-se à sociedade, perfaz mais de uma centena de criaturinhas de Deus. Todas juntas dão menos e mais rala sombra do que Fernando Fernandes, um homem discreto e sabedor que domingo morreu. Num último gesto, deixou o corpo a um instituto de anatomia patológica, furtando-se ao enterro. De certo modo, morreu muito pouco tempo depois da sua livraria que, em boa verdade, estava há anos entregue à bicharada. E os bichos, sabemo-lo todos os que amam os livros, são inimigos das bibliotecas.  

 

 

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o leitor (im)penitente 208

d'oliveira, 01.08.18

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Eduardo Guerra Carneiro, o cometa suicida

 

mcr 1 Ago 18

 

Terá sido em 61 ou 62 que um rapaz louro, olho azul e míope, ternurento e loquaz nos arribou a uma mesa do Mandarim (em Coimbra e na Praça da República, epicentro da vida estudantil). Na mesa a tertúlia variava consoante as horas, os dias e as manias de cada um. De todo o modo, assíduos entre os assíduos, encontravam-se, além de mim, o Eduardo Batarda e o Zé Carlos Monteiro da Costa. Este último, sobretudo ele, adoptou o recém-chegado imediatamente. ZC era um tipo culto, dotado de um humor inteligente e certeiro, de uma ironia educada e afável e, na altura um descobridor de novos autores. A ele devo a s primeiras leituras de Borges, por exemplo. Ainda por cima era casado o que significava uma casa onde se podia ir a qualquer hora do dia ou, muitas vezes, terminar uma noitada.

O Eduardo apareceu já carregado com o seu livrinho de estreia (O Perfil da Estátua) que rapidamente foi esquecido ( o meu exemplar deve ter-se evaporado nas mãos de algum amigo das bibliotecas alheias, coisa aliás que se repetiu com mais títulos de EGC que, contudo, e com grande trabalho, voltei a comprar.

Mantivemos ao longo de muitos anos um contacto irregular mas pontuado por momentos fortes. Encontros aqui e ali, fundamentalmente em Lisboa, algumas cartas sobretudo quando aparecia um novo livro dele ou alguma crónica mais impressiva (e foram muitas) nos jornais. Nesses casos, eu optava por telefonar-lhe para lhe dizer o quanto apreciara aquela prosa ágil, certeira, coloquial mesmo se muitas vezes poética. O Eduardo, nessas alturas, ficava enternecido e agradecia espantado com o meu entusiasmo por aquilo que, finalmente, era um pouco o seu dia a dia nos jornais. E contava-me tremendas paixões que iam acontecendo com uma extraordinária regularidade. “Eduardo, tu tens musas a mais dão para sete vidas, pá!”

Todavia, nos derradeiros anos de vida, as coisas começaram a ser difíceis. Nos últimos anos do século passado, sucedia encontrarmo-nos no “Snob” um bar simpático à Rª do Século, vizinho da rua onde ele morava cujo surpreendente nome nunca esqueci: rua do Abarracamento de Peniche. Foi o Zé Quitério, outro pilar do bom jornalismo e do Snob quem me informou que esta toponímia derivava do facto de nesse local ter havido um acampamento de tropas da guarnição de Peniche mandadas vir para Lisboa para conter as desordens e a ladroagem que se seguiram ao grande terramoto. Si non e vero..

O Eduardo alcoolizara-se dramaticamente e havia tardes e noites em que mal se tinha de pé. Era um destroço de si próprio. Os próprios empregadores começavam a escassear mesmo se, sóbrio pela manhã ele conseguia escrever tão bem como nunca.

Em 2002, os jornais trouxeram a notícia não demasiado inesperada mas de todo o modo pungente. Eduardo Guerra Carneiro, jornalista e poeta suicidara-se atirando-se da janela de sua casa.

Jorge da Silva Melo, outro comum amigo, numa crónica de enorme qualidade noticiou esta morte sob o título notabilíssimo de “O poeta que se atirou para as estrelas”.

Nesta dúzia e meia de anos que se seguiram, EGC apenas revivia na memória de amigos e leitores. Raras, raríssimas, vezes encontrei títulos seus em alfarrabistas ou leilões. Quem tinha os livros, guardava-os (guarda-os) a bom recato.

Agora, sai uma boa antologia dos seus poemas com o título tão eduardiano de “Mil e outras noites”. Leitras e leitores, vão pela obra que a edição (bonita e cuidada, com um prefácio e um posfácio ambos de Vítor Silva Tavares, o pai da editora “& etc”, desaparecido vai um par de anos, que se devem ler com vagar, atenção e prazer: VST no seu melhor...) é de pequena tiragem (300 exemplares) e neste momento os portugueses estão mais para férias e especulação imobiliária de esquerda, a virtuosa que a outra é própria de senhorios maus e malandros. “É assim que se faz a história” (título de um dos melhores livros de Eduardo Guerra Carneiro...

 

na foto: Eduardo Guerra Carneiro