o leitor (im)penitente 211
José Matoso
mcr, 10-7-23
O Zé conheci-o em duas etapas. Primeiro enquanto leitor fiel, atento, entusiasmado e grato, muito grato. Isso, este conhecimento, começou rigorosamente há 40 anos pois foi nessa altura (1983) que li a primeira de uma vintena de obras que tenho dele. Tratava-se de “Religião e cultura na Idade Média portuguesa, editada ainda pela Imprensa Nacional em 82. Posteriormente, José Mattoso emigrou para a Estampa, uma excelente editora comandada pelo meu amigo (e colega desde o 1º ano do liceu) António Manso Pinheiro, um editor de mão cheia, culto de que já por várias vezes referi aqui.
Depois dessa descoberta fascinante, foi como dizem os ciclistas sempre a descer, a ganhar velocidade e prazer. Demorou uma boa dúzia de anos até o conhecer graças à Zé Carvalho, amiga muito querida que foi mesmo minha cunhada. E graças a esse encontro (acho que a Zé levou o marido a casa da minha mãe numa altura em que eu também lá estava. Se já tinha excelente impressão do historiador, nesse momento acrescentei-lhe o que foi o início de uma bela amizade que perdurou por muitos e bons anos pois durante algum tempo o casal Mattoso viveu perto de Aveiro, numa casa da Zé onde o Zé chegou a dizer numa entrevista que era aí que provavelmente morreria. Volta e meia apareciam no Porto, outras vezes fui eu até lá e posso testemunhar que o Sé era um bom garfo e um excelente conversador.
Perdi-lhe a pista quando voltou para Lisboa já doente e muito isolado. Todavia, à falta de convívio iam aparecendo livros e eu não perdoei um que fosse.
E se digo perdoar é apenas por causa do peso de três calhamaços com o título genérico “Património de origem portuguesa no mundo” e focando a Asia, a África e a América. Só um entusiasta que possua uma boa mesa é que se atreve com aqueles volumes que medem 21x24 cm e andam cada um pelos 4/5 quilos. De todo o modo e apear das 500 páginas por tomo valem a pena pela quantidade de informação, pelo tratamento da mesma, pela esplendorosa iconografia. Se bem me recordo, também não eram propriamente baratos...
Quem eventualmente chegou até aqui pensará que desdenho da “História de Portugal” onde Mattoso praticamente reuniu o que havia de melhor na historiografia portuguesa. Ou a “História da vida privada” (quatro fortes tomos ou ainda a longa (e total) lista das biografias dos reis de Portugal de que também ele foi coordenador (e autor pelo menos num dos casos). Luís Miguel Duarte, autor da esplêndida biografia de D Duarte, contou-me como J M não largava os autores, os apressava e, por vezes, os injuriava por se atrasarem na entrega dos originais. Mas referiu também a permanente disponibilidade do coordenador para resolver problemas, dilucidar dúvidas, aconselhar.
Como, acima, afirmei tive o enorme privilégio de conviver com ele o tempo suficiente para m aperceber das suas qualidades e receber um par de informações sobre temas de História portuguesa que sempre me apaixo(nar)am. Entre eles, recordo um dos seus traços de personalidade ou de ingenuidade. Certo dia conversámos sobre a batalha de Ourique e o milagre associado. Nunca levei a sério a crónica desse sucesso mesmo se uma das testemunham do milagre tenha sido um avoengo (a par de uns bispos e outro(s) cavaleiros do Rei. Que o meu antepassado existiu é um facto; que terá guerreado largos anos junto do pai de D Afonso Henriques e mais tarde deste rei parece crível mas é com profunda tristeza que descreio do milagre e provavelmente da batalha que ainda hoje provoca discussões inflamadas e escritos de toda a ordem. O Zé entretanto, sem se dar conta da minha descrença avisou-me tranquila mas veementemente que tudo aquilo, batalha tal como a descrevem e milagre era pura ficção. Fui obrigado a dizer-lhe que também eu não levava a crónica a sério mesmo se o facto de ter um longínquo avô metido a testemunha do milagre me desse um gozo enorme.
Todavia, dele recebi uma grande dose de opiniões, de ensinamentos para já não falar da gentileza e da simplicidade de que fazia gala, Mesmo se além daquela aparente humildade houvesse também uma clara consciência do seu papel na renovação dos estudos de História...
Deveria, finalmente, referir o seu enorme papel de coordenador das obras que mencionei acima (as histórias de Portugal e da vida privada e os 34 volumes dedicados aos nossos reis) É verdade que a esmagadora maioria dos volumes tem autores variados mas não se deve menosprezar o papel de quem coordena.
Bastar-me-á lembrar duas grandes tentativas que n\a chegaram a bom porto pois ficaram incompletas (a “Nova História da Expansão Portuguesa em que ficaram por publicar os Iº, IVº e IXº volumes e a “Nova História de Portugal” donde os VIº e VIIIº volumes nunca viram a luz do dia. E note-se que também estas tentativas tinham um leque de coordenadores e autores de grande qualidade e obra feita ).
Não quero com isto alimentar guerras académicas que despertaram o entusiasmo e a curiosidade no último quartel do século XX mas os factos falam por si.
Alguma comunicação social veio dizer que a morte aos noventa anos foi uma grande perda para o país. Convenhamos, José Mattoso, para além da idade, estava grandemente debilitado pela(s) doença(s) e desde há um par de anos que a sua mais que parca qualidade de vida era conhecida.
Foca uma obra que, ao contrário de tantas outras, mereceu e recebeu todas as honrarias da Academia e do Estado.
E do público, o que não é coisa pouca. José Mattoso conseguiu ser conhecido muito para lá do seu mundo universitário. E, para além de tudo o resto, mereceu o forte reconhecimento geral que, de resto até lhe chegou cedo, logo nos anos 80.
*na ilustração José Matoso, Maria José Carvalho, Serafim e Fátima Guimarães. E com mais vinte quilos do que hoje, um certo mcr que cada vez mais se vai habituando a ver desaparecer amigos e gente boa.