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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

O dono da boca

Sílvia, 19.09.06

Helineide chegou atrasada ao serviço hoje. É minha faxineira há anos e raramente se atrasa. Mora na Rocinha que não é longe, em vinte minutos de ônibus está na minha casa. Tive uns probleminhas, me diz sem jeito.
Eu concordei com a cabeça, tudo bem. Não dei importância, o atraso não foi grande e ter problemas não chega a ser novidade.

Dobrei a beirada da toalha de mesa, como se fosse um plissê – hábito herdado da minha mãe – e segui pensando em como ia explicar ao João, o homem da minha vida, que não era possível continuarmos a viver juntos se ele não contribuisse financeiramente para a manutenção do apartamento e outras pequenas mordomias. Com os olhos perdidos na parede de fórmica da cozinha eu pensava em como ia dizer isto ao homem que amo sem parecer que o estava encostando à parede. Fazendo-o perceber que quem estava contra a parede era eu, eramos nós. E como eu amo aquele homem que tem tantos talentos, mas não o de ganhar dinheiro.

Helineide me viu assim, de olhar fixo na fórmica, as mãos trabalhando a fazer e desfazer o plissê-que-não-acabava-mais e parou junto à mesa. Pigarreou e permaneceu parada. Estranho a Helineide me olhando sem dizer nada.
Interrompi o que fazia :
- O que que é há Helineide ?
- É que estou com um probleminha, achei que a senhora que é tão lida e é médica e tudo, talvez pudesse me ajudar.
- Alguém está doente ? perguntei por curiosidade e alguma solidariedade.
( Como é que vou dizer a ele ? pensei. Meu amor, o meu dinheiro só dá para sustentar uma pessoa e olhe lá. Você precisa trabalhar em algo que dê grana, money, massari)
- Não a senhora não está entendendo, queria desabafar, saber a sua opinião , saber o que que eu faço.
- Fala, Helineide, diz. E parei com o plissê (depois eu penso no que direi a ele).

- Bem a senhora sabe que eu tenho duas filhas. Uma de vinte anos que é mãe solteira e uma de dezoito. A de dezoito trabalha fora numa farmácia, a mais velha não trabalha, toma conta da casa e do menino. São bonitinhas, as duas. Novas, mulatinhas jeitosas, de corpo bem feito, e são ainda por cima mais assanhadas do que eu gostaria que fossem.
- Sim e então?
- Pois é, eu estava muito preocupada com a mais nova porque um sujeito que trabalha para o tráfico se engraçou por ela. Bandido não! eu disse. Mas ela deu bola, por vaidade ou porque ele tem algum poder e dinheiro, deu bola.
- E agora? perguntei preocupada por ela.
- Bem, a senhora sabe, no morro o dono da boca ajuda a gente. Quando falta grana ele empresta. Leva para o médico no carro dele se alguém precisa de urgência. Interfere nas brigas de casais e dá conselhos aos filhos que são maus para as mães – no morro há tanto filho sem pai – compra remédios para os que precisam e não têm como comprar, faz muitas coisas para ajudar a comunidade e nunca pede nada em troca. Mas a gente sabe que ele fez um favor. Eu evito sempre pedir.
Porém desta vez era diferente e não tinha outro jeito, a neguinha não me ouvia, de modo que eu resolvi ir falar com o dono da boca, pedir para ele afastar aquele sujeitinho da minha filha que é uma menina direita.

Dito isto Helineide começa a chorar e eu fico sem entender nada.
- Tá chorando por que Helineide? O que houve, ele não fez nada?
- Ah, Dona Sônia, a senhora nem sabe...
- O que, mulher !?
- Agora o dono da boca está a fim da minha menina. O outro não apareceu mais e é só presente chegando lá em casa. Televisão,som, relógio novo, tudo pra ela. A danada da neguinha anda cheia de ares de rainha. E eu morta de preocupação. Dona Sônia, o dono da boca quer a minha filha, já pensou? A quem é que eu vou pedir agora ? Ela não me ouve. Logo o dono da boca... Já rezei, já procurei mãe de santo, já prometi mundos e fundos a todos eles, já fiz mandinga, promessa e nada. Até igreja de crente eu procurei. Continua tudo neste pé, o dono da boca tá interessado nela. E como está! O que é que eu faço ?

Calei-me por uns segundos. Meu problema perto do dela era nada. E depois eu posso apertar mais as finanças enquanto ele não consegue expor os seus quadros e começar a vendê-los. São lindos os quadros, eu sei que ele tem talento.

- Mas logo o dono da boca, Helineide? Que coisa... disse a abraçá-la sabendo que não tinha solução, a menina ia ter que resolver sozinha a questão, isso se quisesse resolver algo.

Porque o dono da boca, no morro, é quase deus, quase diabo.


Silvia Chueire

No jardim da vida

ex Kamikaze, 17.02.05
Hoje trago-vos um link para um texto de J.A. Barreiros, com o título "No jardim da vida". Não creio , pese embora a minha falta de criatividade, que seja coisa pouca - poucas são as palavras do autor, mas imensa é a sua capacidade de nos tocar no que ainda guardamos em nós de profundidade e sensibilidade, mau grado a rotina mais ou menos frenética da vidinha.
Podem lê-lo aqui, no A revolta das palavras.
aditamento : o link deixou de estar disponível, pelo que se transcreve o texto:
17.2.05
No jardim da vida

Nestas alturas em que está tudo na imprensa atulhado de política eleitoralista, dei comigo, fugido, a ler tranquilamente todas as folhas do «Jornal de Letras», tal como os velhotes com vagar que, nos jardins, lêem dos jornais os anúncios e mais a necrologia. Uma sensação de paz e de tranquilidade invade a alma de uma pessoa, quando uma coisa destas se proporciona, Vem lá, neste último número, um texto de apontamentos auto-biográficos do Jorge Silva Melo, um texto tocado de humanidade, como um jardim soalheiro povoado de pessoas. Vi que ele tem 58 anos, uma idade de referencias que me dizem sempre qualquer coisa, talvez рог eu ter 55. Li e reli, tal como um velho num jardim, a escutar de um outro as grandes e pequenas historias de uma vida. Cheguei ao fim, com a alma a dormitar, contente, «a vida a andar por aí».
POSTED BY JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS AT 6:14 PM

Na escada rolante de um shopping

Incursões, 05.02.05
Na escada rolante de um shopping em mês de saldos nos encontrámos, eleitora indecisa e amigo esclarecido, um a ir para baixo, o outro a vir para cima, ela pensativa com os olhos pregados no movimento dos degraus, ele a olhar, de queixo levantado, para um cume improvável. E conversaram na oposição dos movimentos.

Eleitora indecisa:

Ó amigo esclarecido, ainda bem que te encontro, estou num transe! Tens de me ajudar! Imagina que eu, que me tinha por pessoa sensata e até já tinha dito mais ou menos publicamente que votar Sócrates nem pensar, que o rapaz anda em más companhias (confirmado pelo Anaximandro) e é preciso entalar os grupos de interesses, tive um vipe ali ao passar no Campo Grande: o Sócrates em close-up, a olhar para MIM, com um sorriso maroto mas decente, o olhinho a brilhar e o nariz convenientemente desalinhado, charme acrescido claro, que a imperfeição é que dá o sainete. Foi instantâneo: dei comigo a pensar que tinha de votar no PS, o Sócrates merecia o meu voto!

Amigo esclarecido:

Estás a falar do rapaz e não da política do rapaz. Ou seja, de convencimento de passante, para quem são feitos os “outdoors”. Quais as comparações possíveis a este nível? O Portas, sempre muito assertivo, de feições; o Louçã, naquela cara de equidistância entre as novas problemáticas e o proletariado em extinção; o Jerónimo, que é o sociologicamente mais parecido com todos nós. O que quer dizer que não é pela pinta que lá vamos!

Eleitora indecisa:

E eu não sei?! Claro que sei, por isso mesmo é que estou em transe! Como é possível que isto me esteja a acontecer a MIM?!
O que vale é que, depois desse encontro imediato de virtualíssimo grau, já vi o rapaz na TV e o efeito do close-up desvaneceu-se bastante. Mas em contrapartida, à conta do debate com o PSL, dei por mim a querer acreditar na boa vontade do rapaz, a entusiasmar-me com a sua segurança, a clareza, a inteligência com que piscou o olho à esquerda e à direita, a convicção que pôs no seu discurso positivo… E ainda pró não chega tinha lido havia pouco um artigo do Vital Moreira no Público, onde ele explicava porque é que se devia dar a maioria absoluta ao PS… ora se não me engano, ainda há pouco este ilustre defendia exactamente o contrário… !

Amigo esclarecido:

Será que ele, entretanto, também viu o cartaz? Era o que diria o PSL ... mas não nos deixemos embalar pelos colos da campanha. O que me parece, querida amiga, é que essa da bipolarização entre PS e PSD, entre o Pedro e o José, não nos vai levar a bom porto. O Pedro não vai lá sem o Paulo – já toda a gente sabe. E será que o José vai lá sozinho? Acho que não, e também que não seria sequer bom que fosse, pois o rapaz é demasiado convencido e nem sequer se consegue distinguir bem do Pedro. Precisamos de meter o Louçã no meio deles. E, afinal, este rapaz, com aquela equidistância, até pode fazer bem esse papel. Pena é mesmo não termos uma rapariga mais capaz de interferir nesta disputa, pois só nos resta a Carmelinda, que carrega a mágoa de nunca ter conseguido ser a madrinha do casamento entre o PS e o PC.

Eleitora indecisa:

O rapaz é demasiado convencido, essa é boa, eu cá não dei por nada, embora ouça dizer por aí… deve ser como a história da existência do pilhão, de tanto ser repetida torna-se uma “verdade” incontestada! E convencidos não são eles todos, afinal? Se não fossem seriam auto-propostos candidatos a primeiro ministro? Olha o Louçã, por exemplo, sempre a pregar-nos lições de moral, com aquele ar de virgem intangível! Propostas, fala-me das propostas e de credibilidade, se não continuamos ao nível da escolha outdoor e por aí o José já ganhou o meu voto! Explica-me porque é que eu e pessoas como eu, que ao contrário do que afirmavas há pouco, não estão nada sociologicamente próximas do Jerónimo de Sousa, hão-de (voltar a) votar no Bloco?? Do ponto de vista da economia do país (crescimento, emprego…) se as propostas deles fossem levadas à prática era o descalabro, ou não era?! E nas principais questões emblemáticas que lhes deram visibilidade (despenalização do aborto, combate à fraude fiscal…) a maior parte do trabalho está feita, até o PSL mostra abertura à 1ª e o Sócrates, correndo o risco de assustar o eleitorado do centro, acena com a necessidade de alargar as hipóteses de quebra do sigilo bancário!

Amigo esclarecido:

Acho que estás a ir mais longe do que os candidatos! Que estão ao nível do outdoor! Não vale inventar o que eles querem mesmo! A questão continua a situar-se na superestrutura política: ou queremos a bipolarização PS/ PSD, à americana; ou queremos o multipartidarismo e o pluralismo daí decorrente. Ou queremos a perpetuação do centrão (pois, ainda por cima, no nosso país, para distinguir o PS de José e o PSD de Pedro temos de jogar ao “descubra as diferenças” – e tanto as podemos encontrar, como não, de tão subtis que são) e a manutenção da satisfação dos interesses de que se alimentam e que alimentam, ou queremos mudar, mesmo que esse mudar signifique, de imediato, apenas que os poderes instalados se sintam menos instalados. Cara amiga seduzida por Sócrates, preocupada com a saúde da economia, preocupa-te mais com a saúde da nossa democracia, que é essa que nos pode fazer evoluir. O Sócrates que governe – é o destino dele – mas com “cães à perna”! Dos papões da instabilidade e do remédio do voto útil já tenho dose que chegue!

Eleitora indecisa:

Pois, lá isso é verdade, não vale a pena inventar o que eles querem mesmo – o que me livra de remorsos de não ler os programas todos de fio a pavio… apesar de eu achar que, apesar de tudo, há diferenças, e notaram-se no debate, vá lá, não convém exagerar! Agora essa moda de apresentar os futuros ministros na campanha é que se calhar resolvia o meu problema. O Bloco não apresentava nenhum, porque não se assume como partido de governo e o Sócrates era capaz de apresentar o Alberto Costa como ministro da justiça e aí, para além de ter de ultrapassar todas estas dúvidas de eleitora sociologicamente classe média-alta com coração à esquerda, ainda tinha que digerir mais essa.
Percebo a utilidade de “ter os cães à perna”, claro, aliás sabes bem que comecei por defender que nestas eleições o voto útil era precisamente nos cães e não na perna… mas depois ponho-me a pensar que já é tempo de termos um governo que leve as coisas até ao fim, que não tenha que negociar cada diploma com um qualquer limiano ou que tenha de desvirtuar cada uma das suas propostas por cedências constantes ora à esquerda ora à direita! Não será isso melhor para a nossa democracia? É que quanto à teia de interesses sempre haverá quem os continue a denunciar, quiçá com mais clareza se não estiver à espera de umas migalhas à mesa das negociações, sei lá!

Amigo esclarecido:

A nossa divergência é que eu não quero um governo que “leve as coisas [este país] até ao fim”! Exactamente isso!


Pelos breves momentos que durou a conversa e nos que se lhe seguiram, a oposição dos movimentos esbateu-se.
O amigo esclarecido seguiu caminho, com o queixo ainda mais levantado, convencido de que a eleitora indecisa não mais levantaria a cabeça para o outdoor encantatório. Engano seu! Como podia ela, ao pressentir o José a olhá-la, deixar de querer exibir um pescoço de garça que disfarçasse o duplo queixo!

Postais do Sul (2)

ex Kamikaze, 30.07.04
A estrada da Serra

O cheiro dos estofos de napa do carro familiar garantia enjoo, mesmo em pequenos percursos e quando nas férias rumávamos a Lisboa, pela então incontornável estrada da serra, já se sabia que as “paragens técnicas” seriam inevitáveis.
Pelo menos eu, na minha infantil candura, encarava-as com a naturalidade de quem - nessa época de propagação da ideologia do “pobrezinhos mas honrados” e “orgulhosamente sós” - não podia imaginar que a distância que nos separava da almejada capital a viria a fazer em apenas duas horas (ou um pouco mais, dependendo da maior ou menor observância dos limites de velocidade…), sobrevoando a serra em bem lançados viadutos, para mais com ar condicionado e, sobretudo, com estofos inodoros.
Ainda assim, a beleza da paisagem a partir de São Braz de Alportel (a percepção da Pousada marcava, para nós, o verdadeiro início da viagem) não nos deixava indiferentes.
E aproveitávamos sempre para parar no Barranco do Velho e retemperar os ânimos enchendo os sentidos de paisagem e do ar lavado daqueles montes e vales.
No regresso, quando ali chegávamos à tardinha, não havia enjoo que resistisse às sopas caseiras do restaurante à beira da estrada, em especial a de feijão encarnado, hortaliça e toucinho.

Há muito – não foi preciso esperar pela conclusão da A2 – que a estrada da serra deixou de ser percurso incontornável, para gáudio dos viajantes apressados, como este turista acidental.
Mas, quando o troço que agora a atravessa ainda não estava construído, e as intermináveis bichas tornavam o percurso ante ou post auto-estrada um desespero mesmo para pessoas normalmente pacientes, ocorreu-me - no que me restava da infantil candura - que a quase esquecida estrada da serra poderia ser uma boa alternativa.
Desenganei-me. A estrada – ou melhor, o que restava dela – resumia-se a uma lomba central de alcatrão, de tal forma esburacado que o percurso se tornava uma autêntico desafio à perícia do condutor, aos nervos dos passageiros e à suspensão do veículo.
Quando tentei perceber como era possível terem deixado a estrada chegar a tal ponto, falaram-me da inoportunidade de um investimento em melhoramentos, quando era já certo que a auto-estrada estava para chegar, era uma questão de mais ano menos ano.
Continuei a não perceber. Não teriam as populações serranas, para mais numa época em que os discursos oficiais já há muito manifestavam preocupações com a desertificação do interior, direito a um mínimo de efectiva consideração?

A A2 lá acabou por ser concluída sem que, até lá, o arranjo da estrada da serra se tivesse, sequer, iniciado. Encontra-se hoje, finalmente, em bastante bom estado de conservação e, se nunca chegou a ser uma alternativa a condutores desesperados é, estou em crer, um caminho para suavizar o isolamento e a pobreza das populações, até por via do “boom” de programas turísticos “alternativos” (por regra da iniciativa de gente que sabe ganhar a vida sem desrespeito pela natureza e tradições).
Ou era, que o FOGO, por via da incúria e desleixo, aparentemente crónicos neste país, destrói este ano o que no ano passado, já horribilis, foi poupado. Talvez por isso não esteja activo o link que se fazia em tempos para a página do site do Ministério da Agricultura relativo às árvores de interesse público, de que faziam (fazem?) parte muitas das que se avistavam da estrada da serra.

Oxalá me engane e o link tenha sido apenas deslocalizado.

Postais do Sul

ex Kamikaze, 27.07.04
O Ciclista

Aquela pequena rotunda à entrada de Loulé (para quem vem da EN125/cruzamento das quatro estradas), com uma escultura de vagas reminiscências giacomettianas, não me saía da cabeça.
Era diferente, parecia fazer sentido, ali mesmo à entrada da cidade, inesperada na sua elegância e singeleza, no final da longa avenida de quatro faixas e palmeiras a proclamar “somos uma cidade próspera com os olhos no futuro”.
As burocracias camarárias têm-me obrigado a calcorrear estes caminhos mais frequentemente do que seria desejável para quem, sendo um pouco filho pródigo, se sente, sobretudo e ainda, apenas mais um que vem de férias, em busca do olvido das obrigações e obssessões quotidianas.
Mas, com 43º graus e um vento sahaariano na praia, mais a rotunda que não me saía da cabeça, pensei: perdido por cem, perdido por mil.
E dei por mim, em plena canícula, a perguntar aos poucos transeuntes da avenida, onde ficava o departamento cultural da Câmara, para onde me haviam já reenviado dos paços do concelho.
Quando já desesperava, eis que um louletano improvável sabia onde era e, daí a nada, enfrentava eu, de novo, a administração autárquica.
Sem deixar de comer o seu iogurte, a autarquia despachou-me, em três tempos, para outro departamento. Ensaiei uma segunda investida ( que já não ia chegar antes do fecho e com todo aquele calor a minha determinação investigatória começava a esmorecer) - património histórico? mas se a rotunda não tem mais de um ano...
Não consegui tocar uma única corda sensível do ali rosto da edilidade que, entretanto, continuava placidamente a comer o seu iogurte. Despertei, contudo, a curiosidade de outro funcionário que por ali passava.
Tinha todas as pistas que eu precisava para descobrir o mistério da rotunda que não parecia de plástico. Deu-mas com prazer, encantado por poder falar, de forma tão inesperada, do seu passado de ciclista profissional, do trabalho que desenvolve na Câmara, ligado ao ciclismo e BTT, da falta de ciclovias sentida por moradores e turistas (a que eu contrapunha os 4 Kms de picada entre a estação da CP e Loulé/entrada no IP1, a necessitar de arranjo urgente), das tradições de Loulé (e Tavira) no apoio a esta modalidade, do sistema de patrocínios às equipas (que dá nomes tão interessantes como Imoholding Loulé Jardim e Whurt Bom Petisco-Tavira), da inauguração do grupo escultórico “O Ciclista”, da autoria do holandês Jits Bakker, no dia 7 de Agosto de 2004, quando da passagem por Loulé da Volta a Portugal (que maldade, este ano Loulé fica fora do percurso), da outra rotunda maior, no início da avenida, com “gente feliz dançando” também do mesmo escultor, aliás internacionalmente afamado . Mas o melhor, mesmo, era contactar o gabinete de imprensa da Câmara.

Quando saí, transeuntes e lojistas sem movimento esticavam o pescoço olhando para o céu. Olhei também. Havia dois: a poente o mesmo azul desmaiado de neblina dos últimos dias, a nascente, por cima de uma fita do mesmo azul, uma massa cor de ferrugem, que dava à cidade um sombreado telúrico. Ardia uma zona do Campus de Gambelas, a universidade de Faro plantada à beira da Ria Formosa.
À noite, um deslocado cheiro a lareira.
Hoje , cumpridas as burocracias e fornecida de press releases q.b., segui caminho por entre cinzas de um dos ex-libris da serra de Loulé: ardia Alte!

Caro Carteiro

ex Kamikaze, 16.07.04
Não podendo, naturalmente, questioná-lo sobre as alegadas razões pessoais que invoca para nos deixar à míngua, que só me resta respeitar, há-de compreender que estranhe a solenidade desta sua declaração pública de cessação de colaboração activa no Incursões.
Falta de motivação - falta de assunto, falta de tempo, simples preguiça ou até falta de pachorra - são boas razões para não se escrever hoje, amanhã ou depois. Mas porque não depois de depois - se lhe apetecer? Para quê fazer uma declaração de princípio quanto a continuar ou não a colaborar activamente?

Eu, que não conheço o Carteiro para além do muito que aqui nos tem dado de si, arrisco algumas explicações:

De um contributor como o Carteiro, que nos tem iluminado com o seu conhecimento da vida e da alma humana, no seu tom só aparentemente singelo e tantas vezes sublimemente irónico, não pode aceitar-se que nos apresente como motivação para o seu statement o não ter nada para dar!
A não ser que se trate de um carteiro inseguro e com pouca auto-estima, a precisar de incentivo e mimo...
Se assim for (e há razões para o presumir: relembre-se que em tempos até pediu desculpa por "escrever demais" ), desde já apelo a uma onda de solidariedade para com o “nosso” carteiro: mime-se o homem, que nestes tempos em que a caixa do correio só nos brinda com publicidade, extractos bancários e facturas, receber, de tempos a tempos, uma verdadeira CARTA é privilégio de que certamente não estamos dispostos a abdicar com facilidade!

Mas Marinquieto intuiu, tal como eu, que esta declaração do Carteiro poderia estar relacionada com a Sugestão e Pergunta de L.C.
O que reforça a legitimidade da minha incursão psicológica acima ousada... (cfr. comentário do Carteiro ao post em referência).
Se assim é, trata-se de um total equívoco, aliás partilhado por Marinquieto - ainda que numa interpretação diversa - como decorre do seu próprio comentário ao mesmo post.
Tal como L.C., penso que a Instância de Retemperação só começou verdadeiramente a sê-lo a partir do momento em que colaboradores como o Carteiro e o Compadre Esteves> passaram a colaborar mais activamente, contribuindo para abrir horizontes temáticos e reflexivos mais alargados e estimulantes. O que desde logo se reflectiu, também, num acréscimo de comentadores e, presumivelmente, leitores.
Começava, pois, finalmente, a trilhar-se o caminho sempre perspectivado para o Incursões por L.C..
Por isso mesmo - e tendo em conta que muitos dos posts estritamente jurídicos são, em regra, bastante longos e, para muitos, quiçá maçudos - L.C. questionou-se sobre a conveniência de abrir uma "filial" onde tais posts poderiam ficar arquivados e disponíveis para leitura atenta por aqueles a quem as respectivas temáticas interessassem especialmente, dando assim mais visibilidade aos demais contributos.
Na "casa mãe" postar-se-ia apenas uma versão mais sintética, com link para o dito arquivo.
A ideia parecia-me boa. Mas, do teor de alguns comentários à Sugestão e Pergunta de L.C. conclui-se, no entanto, que o seu propósito não foi claramente entendido por alguns colaboradores e leitores. Ou foi e, no entanto, não concordam com a ideia, receando que a discussão sobre esses temas, que se pensava interessarem quase só aos juristas - era engano e ainda bem! - se torne numa hermética discussão entre especialistas.
São bem capazes de ter razão.

Caro Carteiro: espero que não leve a mal a ousadia desta minha incursão psicológica.
E ainda que a sua motivação seja só uma agudização do desencanto que nestes últimos tempos grassa, lembre-se que contamos consigo mas, acima de tudo, estamos consigo.