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Incursões

Instância de Retemperação.

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O 25 de Abril chegou tarde a Marco de Canaveses

José Carlos Pereira, 25.04.24

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Para comemorar os 50 anos do 25 de Abril de 1974, relembro aqui a ocasião em que o Dia da Liberdade foi evocado em cerimónia oficial na Câmara Municipal de Marco de Canaveses, após um longo período de ostracização da data e do seu significado. Foi em 25 de Abril de 2006 que isso ocorreu e pareceu-me oportuno recordar o discurso que então fiz na qualidade de coordenador do grupo municipal socialista:

"Senhor Presidente da Assembleia Municipal, Senhoras e Senhores Deputados

Senhor Presidente da Câmara Municipal, Senhora e Senhores Vereadores

Excelentíssimos Senhores e Caros Marcoenses

Encontramo-nos hoje aqui a celebrar uma data determinante do Portugal contemporâneo – o dia em que um punhado de jovens militares teve a ousadia e a coragem de conduzir uma revolução que mudou o regime político e abriu as portas à construção de um estado de direito, livre e democrático.

Não é possível comemorar o dia 25 de Abril de 1974 sem enaltecer a acção desses homens a quem tanto devemos e à frente dos quais me permito destacar, pela coragem, pela humildade, pelos valores, pelo desapego ao poder, o malogrado Fernando Salgueiro Maia.

Num poema que lhe dedicou, a poetisa Sophia de Mello Breyner evocou, de forma sublime, a dimensão humana de Salgueiro Maia:

“Aquele que na hora da vitória

Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância

Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso

Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi “Fiel à palavra dada à ideia tida”

Como antes dele mas também por ele

Pessoa disse”

O processo revolucionário que se viveu nos anos imediatamente a seguir à revolução não foi isento de percalços, mas foram esses jovens capitães de Abril que permitiram que a minha geração e as que se lhe seguiram crescessem numa sociedade renovada, aberta, plural, receptiva a todas as formas de manifestação artística e cultural. Sem censuras, sem medos, sem ameaças. Sem polícia política e sem guerra. Com total liberdade.

O país renascido em Abril percorreu o seu caminho, por vezes com dificuldades, mas soube ganhar o respeito da comunidade internacional, e acabou por constituir um exemplo pela forma como decorreu o processo de transição para o regime democrático e a integração na União Europeia.

Senhoras e Senhores

Comemorar o 25 de Abril em Marco de Canaveses é também um motivo de particular regozijo e satisfação. Ainda há dois anos atrás, por ocasião do 30º aniversário da revolução, propus na Assembleia Municipal que a autarquia assinalasse essa efeméride condignamente, com o objectivo de fazer lembrar os mais novos da importância da data e de fomentar a participação cívica da juventude. Sugeri então que se realizassem conferências e debates nas escolas, envolvendo protagonistas da revolução e representantes dos partidos políticos, que se fizesse uma sessão solene aberta à população e que fossem homenageados os primeiros autarcas eleitos pelo regime democrático em 1976. Esta proposta não teve qualquer acolhimento por parte da Câmara Municipal.

Aliás, as comemorações do 25 de Abril em Marco de Canaveses estiveram limitadas nos últimos anos às iniciativas de um grupo de democratas, provenientes de vários quadrantes políticos mas unidos pelo propósito de defender a liberdade e os valores da cidadania responsável, de lutar pelo desenvolvimento estruturado da sua terra e pela dignificação dos marcoenses, nunca abdicando de levantar a voz contra as arbitrariedades e os atropelos.

A afirmação do poder local democrático, uma das conquistas de Abril, não teve um percurso fácil na nossa terra. Durante mais de vinte anos, o que se viveu em Marco de Canaveses foi a consagração de um projecto de poder centrado numa pessoa e nos seus interesses. Tudo foi construído e alimentado em função de um desígnio: consolidar o poder a partir da presidência da Câmara Municipal.

Essa rede de interesses envolveu empresários, clubes, associações, comunicação social e praticamente todos os agentes da sociedade civil que, por este ou aquele motivo, dependiam da autarquia para o desenvolvimento das suas actividades. Poucos foram aqueles que não sucumbiram à força do poder.

Houve adversários políticos que mudaram de campo porque isso era mais conveniente, houve quem se deixasse encantar por negócios ou assessorias, houve quem tudo fizesse em troca de um emprego para si ou para os seus. Houve mesmo quem perdesse por completo o amor-próprio e, depois de insultado ou agredido, se tivesse rendido aos encantos do poder.

Para superar este período e preparar um futuro diferente, precisamos no entanto de entender o que esteve na base do sucesso desse projecto de poder. E falo de sucesso porque, não o esqueçamos, esse poder foi sufragado por sucessivas maiorias de marcoenses durante mais de vinte anos.

O nosso concelho tem de ser uma terra de homens e mulheres livres. Onde os nossos jovens tenham sucesso na escola e na procura de emprego qualificado. Onde os empresários não necessitem de favores para verem aprovados os seus projectos.  Onde o relacionamento entre a autarquia e os clubes e associações seja sadio e transparente. Onde a comunicação social seja isenta e independente. Onde as organizações da sociedade civil sejam estimuladas e apoiadas sem necessitarem de ser subservientes com o poder. Onde as manifestações culturais fomentem a busca de novos conhecimentos e o desenvolvimento do espírito crítico. Onde a promessa de um emprego não seja meio caminho para renunciar a valores e a compromissos.

Quando estas premissas forem garantidas, não haverá lugar para mais populismos e demagogias. Cidadãos esclarecidos, activos e intervenientes são mais exigentes com os responsáveis políticos e não se deixam enganar facilmente pelos vendedores de ilusões.

Senhoras e Senhores

Trinta e dois anos depois da revolução de Abril, há ainda muito por fazer em Marco de Canaveses. Neste período, perdeu-se demasiado tempo, muitas oportunidades foram desbaratadas e muito dinheiro foi entretanto desperdiçado.

O concelho de Marco de Canaveses e a sub-região do Tâmega, onde estamos inseridos, registam indicadores de desenvolvimento dos mais atrasados do país. Seja na educação, na cultura, na economia ou no ambiente. É urgente, por isso, encontrar um rumo novo.

Não nos podemos conformar com as taxas de abandono e insucesso escolar, com o défice de iniciativas culturais, com as taxas de desemprego superiores à média da região e do país, com o definhar do comércio tradicional e da agricultura, com a ausência de empresas de capital tecnológico, com a escassa cobertura das redes de água e saneamento, com o desinvestimento na defesa e valorização da floresta, com o desaproveitamento das condições ímpares proporcionadas pelos cursos fluviais que servem o município.

O concelho precisa de fazer ouvir a sua voz, de reivindicar novas escolas, de lutar por melhores acessibilidades rodoviárias e ferroviárias, de atrair projectos estruturantes, de construir equipamentos culturais e desportivos, de criar emprego e fixar os jovens quadros.

O partido que venceu as últimas eleições autárquicas tem pela frente o desafio de concretizar as propostas e os projectos apresentados aos marcoenses e será por isso julgado no final do seu mandato. O facto de não possuir maioria no órgão deliberativo do município exige capacidade de diálogo, disponibilidade para acolher propostas de outras forças políticas e total transparência nas decisões.

O Partido Socialista, através dos seus autarcas, continuará a ser uma oposição interveniente, leal e responsável, firme na defesa das suas ideias e dos seus princípios, honrando os compromissos assumidos perante os marcoenses.

Queremos ajudar a construir um futuro melhor para Marco de Canaveses. Com esperança, determinação, ousadia e ambição. Ainda e sempre, em nome de Abril!

Obrigado"

Obrigado, Otelo!

José Carlos Pereira, 25.07.21

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Morreu Otelo Saraiva de Carvalho. Personagem excêntrica e de excessos, na vida pessoal e política, com acções muito meritórias e outras absolutamente condenáveis, pelas quais pagou com a prisão, prefiro guardar a memória do comandante operacional do 25 de Abril e do herói da revolução que nos devolveu a liberdade em 1974. Por isso, obrigado Otelo!

Viva o 25 de Abril de 1974

sociodialetica, 25.04.12

 

1. Decorria o ano de 1971.

 

A União de Estudantes Comunistas preparava, obviamente na clandestinidade, mais algumas acções com os estudantes portugueses. Por sugestão do Partido Comunista foram editados uns postais em homenagem à liberdade com uma frase sobre a sua utilização na construção da Revolução Democrática e Nacional.

 

Por muitos esforços que faça não consigo recordar-me nem da imagem nem da frase que a subescrevia. Mas recordo-me da longa discussão que aquela iniciativa teve na Direção da UEC. Muitos de nós defendíamos que a missão das nossas vidas era lutar pela conquista da liberdade mas não acreditávamos que assistíssemos a essa alvorada redentora. Todos nós sabíamos que a liberdade seria obtida mas poucos admitíamos que fosse em nossas vidas. Todos sabíamos que o fim do fascismo era inevitável, mas poucos acreditávamos que estivesse para breve. Uma coisa eram as análises políticas que se faziam, que mostrava que o regime de então abria brechas em várias frentes (colonial, diplomático, económico, etc.), outra coisa era transformar essas leituras racionais numa convicção de curto prazo.

 

O postal foi amplamente distribuído. Continuava o fascismo, amolecido pelo sorriso e hesitações de Marcelo Caetano, mas com a continuação da PIDE/DGS, com as cargas policiais, com a censura, com a guerra colonial, com os mais salazarentos à espera do momento de disferir o golpe. Poucos sonhávamos que em nossas vidas assistíssemos à Revolução de rutura e pudéssemos lutar de face descoberta pela construção de uma sociedade que correspondesse aos oito pontos da Revolução Democrática e Nacional:

  • Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático;
  • Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral;
  • Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha;
  • Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral;
  • Democratizar a instrução e a cultura;
  • Libertar Portugal do imperialismo;
  • Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência;
  • Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.

Mas foi em nossas vidas que tal aconteceu.

 

 

2. Quando o 25 de Abril de 1974 aconteceu estava em Paris, com minha companheira e dois filhos, um com mês e meio de idade.

Estava em Paris por um conjunto de acidentes.

 

O primeiro foi no início da década de 70 terem-me proposto que passasse à clandestinidade. Em termos práticos significava ser funcionário político, mudar de identidade, passar a residir onde fosse necessário, romper totalmente com a família e os amigos por questões de segurança, aumentar os riscos de ser preso e torturado com maior severidade. Estava de acordo com essa mudança de vida mas diversas contratendências impediram a sua concretização.

 

O segundo, e o mais importante, foi ter havido uma forte investida da PIDE/DGS contra a União de Estudantes Comunistas e vários dos presos terem-me indicado como responsável político por algumas Faculdades de Lisboa.

 

O terceiro, em 1971, na sequência da realização, em Budapeste, da reunião que levou à constituição da União de Estudantes Comunistas. Em Budapeste porque os elementos que iam de Portugal tinham que fazer vários despistes de viagem para não serem seguidos e num país socialista a segurança era maior. Em Budapeste porque assim foi proposto por Álvaro Cunhal e Carlos Brito, membros da direção do Partido Comunista também presentes. Tinha instruções rigorosas para saber qual era a minha “situação conspirativa” ao regressar a Paris, antes do meu regresso ao país. Entretanto soube que já tinha sido denunciado por diversos militantes presos e havia que avaliar se devia regressar ou não. O elemento de contacto em Paris, perante esta informação respondeu “mesmo que tenhas sido denunciado o que queres que eu te faça?”. Limitei-me a dizer “nada” e a apanhar o comboio em Austerlitz. Um pequeno acontecimento que me valeu vários meses de perseguições, ameaças de morte e sobretudo de inquietudes sucessivas para a minha filha, muito bebé.

 

O quarto foi ter fugido de Portugal com dois destinos que se não concretizaram. O primeiro destino seria Bruxelas onde pensava obter o estatuto de “refugiado político” e garantir uma vida relativamente estável com a família. Paris foi mais forte e aí fiquei durante vários meses à procura de emprego e depois a fazer contabilidade de custos numa empresa. Uma Paris que me acolheu na angústia do exílio e na mesquinhez perversa dos emigrantes políticos portugueses. O segundo destino seria Moscovo para onde não fui porque numa das visitas da minha companheira a Paris ela ficou grávida e a burocracia soviética queria alguém para trabalhar sem os impedimentos de dois filhos.

 

Enfim, estávamos em Paris, comigo a ganhar pouco mais que o salário mínimo nacional, a habitar em Bourg-la-Reine num casa com pouca coisa, mas agradável.

 

 

3. No 25 de Abril, as informações que nos chegavam eram de golpe de estado, transformado em revolução pelas manifestações, pelo aparecimento rápido dos partidos políticos que tinham estado na clandestinidade (PC, há décadas, e PS, recentemente), pela dinâmica das populações, pela forte atividade das organizações populares já existentes (como os sindicatos) ou então criadas (comités para isto e para aquilo).

 

Os dias entre o 25 de Abril e o 1º de Maio foram vividos com grande intensidade. Por um lado tudo cheirava a liberdade e ao fim do fascismo. Por outro apareciam os apelos dos militares à calma popular e a figura sinistra do Spínola. Sabíamos que este era uma figura importante no enfraquecimento do regime – pelas suas posições sobre a guerra colonial –, mas também sabíamos que não seria com ele que a liberdade efetiva chegaria.

 

Começámos a prepararmo-nos para regressarmos ao país. Fosse como fosse era lá que tinha que estar. Chegava de ir para a beira do Sena olhá-lo com a nostalgia do mar português. Chegava de não andar com dinheiro na algibeira para não cometer a loucura de comprar um bilhete de comboio para Portugal. Simultaneamente, os filhos exigiam-nos prudência e saída planeada. Na empresa, Ogimex, pediram-me para adiar a saída para encontrarem quem me substituísse. Talvez também para me oferecerem uma comovente festa de despedida. Entretanto chegou-me a convocatória para o serviço militar, mas só para Julho.

 

 

É assim que respondo à pergunta de Baptista Bastos: “Onde estava no 25 de Abril?”