sonhar a terra livre e insubmissa 1
Magister dixit
O Dr. Cavaco Silva, actual Presidente da República e candidato à sua própria sucessão nesse lugar pelos vistos apetecível, entendeu brindar-nos com mais uma afirmação surpreendente. Ao que se lê, S.ª Ex.ª andou constantemente a prevenir o Governo, o parlamento e a arraia miúda (nós, os paisanos) das catástrofes que nos esperavam se não tivéssemos cabecinha. S.ª Ex.ª viu e previu (como eu aliás, que não sou presidente, sequer economista mas apenas – e basta! – cidadão interessado) que o caminho de esbanjamento de recursos que foi visível desde quase o primeiro dia de Sócrates (e que repetia outros idênticos de Guterres e de um certo Cavaco Silva que durante oito anos governou a desgraçada pátria com impressionantes maiorias absolutas) ia dar para o torto. Como deu.
S.ª Ex.ª parece esquecer-se de que, enquanto Presidente da República, andou por aí a permitir que se passasse a imagem de convergência táctica e estratégica com o Governo actual. De facto, se avisos houve, passaram despercebidos. Ou sou eu que sou surdo e burro como um portão de quinta ou S.ª Ex.ª usou uma linguagem de tal modo cifrada que a todos (e a mim, especialmente) soava como serbo-croata falado por um nepalês pouco dotado para línguas. Por junto e que me recorde, S.ª Ex.º lançou o famoso suelto da “má moeda estragar a boa” em tempos dessa outra aberração que foi o episódio folhetinesco Santana Lopes. Com Sócrates (o actual, não o grego, Deus o tenha em bom descanso já que não impediu que lhe usassem - e abusassem – o nome) foi uma lua de mel se é que me permitem a imagem.
Tentando caboucar no tempo passado, relembro algumas fífias todas ditas em tom paternal e meloso que só para iniciados se poderiam tomar pelo que agora se afirma: claros avisos à navegação.
Não fora o respeito que, enquanto cidadão e republicano, devo a S.ª Ex.ª, atrever-me-ia a duvidar da veracidade das palavras do primeiro dos portugueses.
Porque, como Brutus, S.ª Ex.ª é um homem honrado mesmo que, no caso em apreço, eu não seja Marco António mas apenas e só um cidadão que se aproxima da velhice e se chama mcr. Se S.ª Ex.ª diz que preveniu claramente o povo, as elites e o Governo, que remédio tenho eu, amicus Plato sed magis veritas, senão aceitar a sua palavra? Tanto mais que, S.ª Ex.ª falava como candidato à sua própria sucessão, ou seja a um lugar que nos representa a todos, interna e externamente. Seria impensável que, numa circunstância assim, tão importante, alguém se atrevesse, sequer, a maltratar a verdade, a vesti-la do manto leve da fantasia, a travesti-la, a, ahimé!, a manipulá-la. Se S.ª Ex.ª diz o que disse, então fui eu, e como eu uma multidão de cidadãos surdos como calhaus, que digo?, como penedias, quem viciosa e impudentemente não ouviram, não quiseram ouvir, ou ouviram e não se importaram, ou importaram-se pouco como sucede com as crianças irresponsáveis, como os súbditos irresponsáveis que S.ª Ex.ª em tempos não muito longínquos, pastoreou com mão firme mas amorável.
Eu, conhecido pela caturrice, pela velhice, pela má fé, por ser apoiante – amigo há cinquenta anos - de Manuel Alegre só recordava aquela embrulhada das escutas a Belém que conseguiram rebentar com as hipóteses, na altura razoáveis, da dr.ª Ferreira Leite chegar a S. Bento. A conspiração belenense, as escutas alegadas, as fantasiosas declarações (e os extraordinários e sonoros silêncios de S.ª Ex.ª....) provenientes dos porta-vozes da Presidência foram um bálsamo absoluto na tentativa de fazer esquecer a recente e pesada derrota do P.S. nas eleições europeias. Ao molestar a dr.ª Ferreira Leite, fizeram esquecer as criticas generalizadas (e justas e justificadas ) à deriva despesista, aos erros de apreciação da crise, ao estado comatoso do défice, da dívida pública e à ineficácia das medidas entretanto tomadas. A pobre senhora que presidia aos destinos do PPD apareceu aos portugueses como uma pitonisa da desgraça, como uma ave de mau agouro o que, de resto, foi amplificado dentro do seu próprio partido pelos partidários da actual direcção Passos Coelho. Todavia, ao reler as criticas da “tia Manuela” (era mesmo assim que desdenhosa, grosseira e machistamente a referiam) não posso deixar de pensar que a senhora avisava correctamente, previa com serenidade e sabia perfeitamente o desastre que por aí vinha. E virá, queiram ou não fingir que isto não é a Grécia nem a Irlanda (nem o Burkina Faso ou a República Centro-Africana, como por vezes parece).
S.ª Ex.ª, nesta sua saltitante peregrinação entre visita presidencial e sessão de propaganda, discreteia agora, com clareza e dureza sobre os seus avisos, premonições e demais declarações. Agora, subitamente, todos o entendem perfeitamente, até eu, o surdo acima citado. Pensar-se-ia que, esta súbita revelação este claro entendimento que ora nos unge como a palavra reencontrada em Emaús, significaria que, em tempos não muito distantes, se cultivou, et pour cause, uma langue de bois espessa e ininteligível que rendia dividendos altos. Por um lado dizia-se o que se dizia, num murmúrio abafado e entre dentes, por outro lançavam-se os alicerces do futuro candidato que aparentemente estava calmo mas que de facto condenava irremediavelmente às gemonias (e não à cicuta) Sócrates, o P.S. e, por arrastamento, o outro inevitável candidato Manuel Alegre. Manobra, dirão. Nada disso! Nunca houve manobra, porque S.ª Ex.ª como Brutus é um homem honrado...
Amigos, portugueses, cidadãos, oiçam-me: vim apenas enterrar César e nunca atacar o actual Presidente ou sequer defender a outrance o meu candidato. Apenas venho enterrar César já que desenterrar a verdade me está vedado, porque Brutus é um homem honrado...
Declaração de interesses: o escriba é amigo de longa data e apoiante actual de Manuel Alegre. Por essa razão inaugura esta série para diferenciar os textos normais que aqui vai debitando daqueles que, como este, referem directa ou indirectamente a campanha eleitoral para as presidenciais. Assim os leitores menos interessados poderão passar à frente e dar por não escritas as crónicas com o titulo geral “sonhar a terra livre e insubmissa” citação roubada a “Pátria, lugar de exílio” de Daniel Filipe, ed Presença, magnifico livro de poemas ainda à venda (não confundir com a antologia do mesmo nome, também recomendável, organizada por Egito Gonçalves, para a Inova).