Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Textos alheios 5

d'oliveira, 24.07.20

images.jpeg

Textos alheios

d'Oliveira, fecit 

Eis o poema completo citado por mcr ontem.

Autor Léopold Sedar Senghor

in "Chants d'ombres" Seghers, Paris, 1956

 

 

Femme nue, femme noire
Vêtue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté
J’ai grandi à ton ombre; la douceur de tes mains bandait mes yeux
Et voilà qu’au coeur de l’Été et de Midi,
Je te découvre, Terre promise, du haut d’un haut col calciné
Et ta beauté me foudroie en plein coeur, comme l’éclair d’un aigle

Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche qui fais lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux caresses ferventes du Vent d’Est
Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l’Aimée

Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle, huile calme aux flancs de l’athlète, aux flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes, les perles sont étoiles sur la nuit de ta peau.
Délices des jeux de l’Esprit, les reflets de l’or rouge sur ta peau qui se moire
A l’ombre de ta chevelure, s’éclaire mon angoisse aux soleils prochains de tes yeux.

Femme nue, femme noire
Je chante ta beauté qui passe, forme que je fixe dans l’Éternel
Avant que le destin jaloux ne te réduise en cendres pour nourrir les racines de la vie.

 

textos alheios 4

d'oliveira, 14.04.20

large.jpg

COVID-19

 

 

aninhada sobre o rio

a cidade cinza na coada luz  cidade

liberal e burguesa

de trabalhadores e mercadores

perdeu o ruido da sua gente

nas ruas becos e vielas

num silêncio estranho

os pombos debicam a tristeza

levantam voo de repente

nas pedras de granito

da Ribeira ressoam ecos de antanho

outras pestes outras dores

sem barcos sem velas

o Porto aguarda à morrinha e ao frio

o momento de libertar seu grito

de renovada liberdade

 Março de 2020

Poema de António Manuel Lopes Dias, poeta discretíssimo que, em quase cinquenta anos, publicou apenas três  (!!!) excelentes livros: País Ignorado (Centelha, Coimbra, 1973). Sobre escritos (Porto, Papiro, 2006) e As Esquinas do Tempo (Porto, Chiado ed. 2014) Colaborou, cito de memória, nos "Poemas Livres", em Poesia Útil e numa antologia de poetas universitários de que não recordo o nome exacto.

Formado em Direito, pela Universidade de Coimbra, distinguiu-se suficientemente para ser preso pela PIDE em 1962 (fez parte dos 44 estudantes seleccionados entre os 200 que ocuparam a sede da AAC encerrada pelas autoridades). Já no Porto, continuou a luta de resistente como advogado de sindicatos e defensor de presos políticos. Coragem, firmeza e abnegação nunca lhe faltaram. Depois do 25 de Abril foi presidente da Caixa de Previdência e Abono de Familia da Industria e posteriormente continuou a sua notável carreira ocupando vários cargos dentro da estrutura da Segurança Social no Norte. Perito reconhecido e admirado nestes temas foi consultor do Estado de Moçambique durante anos tendo, também aí, deixado provas da sua grande competência. 

Pedi-lhe licença para publicar um pequeno poema sobre os livros  (está afixado numa estante) e ele, na volta do correio enviou-me este original, fresquinho ainda a cheirar a tinta. Não desisto de publicar o citado poema quando  chegar a sua altura que, pelo andar da carruagem, isto está para lavar e durar. 

A vinheta: gravura (xilogravura) de Hiroshige, um dos grandes mestres do Ukiyo-e, ("imagens do mudo flutuante") só comparável a Hokusai. Autor de uma extensa obra onde sobressai a série "53 estações do Tokaidô". viveu desde os fins do sec XVIII até meados do século seguinte. As suas gravuras ainda hoje alcançam preços notáveis. 

textos alheios 2

d'oliveira, 08.04.20

images.jpeg

Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos vermelhos no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho; verdes redondos no sono do pimenteiro:

o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono: sono vermelho: sombras amarelas no gato redondo de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: a água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimento de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdíssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silencio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite de pimenteiro sono de cal folhas do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro:

etcaeteramente vosso inteiro:

herberto helder:

em Janeiro de mil novecentos e sessent e três

textos alheios 1

d'oliveira, 07.04.20

gata e Marilyn.jpg

Gato num Apartamento Vazio

 

Morrer – isso não se faz a um gato.

Pois o que há de fazer um gato

num apartamento vazio.

Trepar pelas paredes.

Esfregar-se nos móveis.

Nada aqui parece mudado,

e no entanto algo mudou.

Nada parece mexido,

e no entanto está diferente.

E à noite a lâmpada já não se acende.

 

Ouvem-se passos na escada,

mas não são aqueles.

A mão que põe o peixe no pratinho,

também já não é a mesma.

 

Algo aqui não começa

na hora costumeira.

Algo não acontece

como deve.

Alguém esteve aqui e esteve,

e de repente desapareceu

e teima em não aparecer.

 

Cada armário foi vasculhado.

As prateleiras percorridas.

Explorações sobre o tapete nada mostraram.

Até uma regra foi quebrada

e os papéis remexidos.

Que mais se pode fazer.

Dormir e esperar.

 

Espera só ele voltar,

espera ele aparecer.

Vai aprender,

que isso não se faz a um gato.

Para junto dele

como quem não quer nada,

devagarinho,

sobre patas muito ofendidas.

E nada de pular miar no princípio.

 

Wislawa Szimborska, prémio Nobel, traduzida por Manuel António Pina